São Paulo, 24 (AE) - Ele morreu com fama de santo, capaz de realizar milagres e ter premonições. Demorou quase 400 anos para ser canonizado por ter sido um homem polêmico, que vivia na pobreza dos primeiros anos de colonização brasileira, apesar de ter um cargo no alto escalão da Companhia de Jesus. Foi acusado por detratores de ser um instrutor de algozes ao apontar um erro no nó da forca de um francês calvinista condenado à morte. Com tudo isso, produziu uma imensa obra literária, na qual se destaca o teatro, o primeiro a ser escrito no Brasil, inaugurando a dramaturgia nacional.
Parte da obra teatral do padre José de Anchieta, que se iniciou em 1561 com o "Auto da Pregação Universal", acaba de ganhar nova tradução, a terceira feita neste século e a primeira a se utilizar de novos conhecimentos sobre a língua tupi obtidos a partir da correspondência de índios brasileiros encontrada na Holanda - índios que lutaram pela expulsão dos holandeses do País no século 17. O feito é do professor da USP Eduardo de Almeida Navarro, que lança no dia 08, pela Martins Fontes, "Teatro - José de Anchieta" (244 págs., R$ 27,00). O livro contém o "Auto de São Lourenço" e o auto "Na Aldeia de Guaraparim", os principais textos escritos por Anchieta, em tupi, para a catequese dos índios.
"Todos os outros textos em tupi foram composições feitas a partir desses dois", conta o pesquisador. "Anchieta teve a importante missão de trabalhar artisticamente a língua tupi, que muitos consideravam bárbara", explica. A história do "Auto de São Lourenço" começa com o martírio do santo, morto no tempo de Valeriano, censor do Império Romano por volta do ano 258 d.C. O segundo ato tem como cenário uma aldeia indígena em que demônios discutem como destruí-la com suas maldades. Resistem a eles São Lourenço, São Sebastião e o Anjo da Guarda, que livra a aldeia.
Numa outra cena, os imperadores - note-se que eles falam castelhano, enquanto os demônios falam tupi e São Lourenço, português - são torturados no fogo eterno. Um anjo convida os diabos, a quem havia perseguido antes, a torturar os imperadores. Assim, os santos servem-se dos demônios como carrascos dos tiranos romanos. No quarto ato, o anjo vem acompanhado por duas personagens alegóricas, o Temor de Deus e o Amor de Deus. No último ato, 12 meninos dançam em louvor a São Lourenço. "No Auto do São Lourenço, encontramos várias características da cultura indígena", diz Navarro. "Por exemplo, a antropofagia: os diabos discutem como vão comer um prisioneiro", conta.
"Em outra cena, uma velha chega diante de um personagem e chora; era dessa maneira que os índios se cumprimentavam". O teatro de Anchieta teve forte influência de Gil Vicente. "Principalmente nas alegorias, como a personificação do amor de Deus", diz o professor. Milagres - Vários milagres foram atribuídos ao padre Anchieta. Um deles, o de ter ressuscitado um índio morto sem batismo e cuja alma teria aparecido entre os vivos para pedir que fosse batizado. Diz-se, também, que ele teria pedido a uma ave que formasse um grupo de muitas aves para fazer sombra sobre uma canoa cheia de índios que estavam sendo castigados por um forte sol no Canal de Cananéia. Padre Anchieta sempre viveu em harmonia com os animais da terra, descrevendo-os em seus textos para os portugueses.
Adivinhações e milagres não são abertamente descritos em seu teatro, embora a volta de espíritos do outro mundo seja comum. No auto "Na Aldeia de Guaraparim", a alma de um índio volta à Terra evocando a mãe de Deus. "Os demônios disputam o seu espírito", explica Navarro. Essa peça foi totalmente escrita em Tupi. Alguns governantes, como d. Pedro II, a princesa Isabel e Felipe II, pediram a canonização de padre Anchieta. O processo, no entanto, ficou parado no Vaticano por mais de 300 anos. A beatificação ocorreu em 1980 pelo papa João Paulo II. Vários fatores, segundo Navarro, contribuíram para esse atraso. Um deles, a acusação de que ele fosse um instrutor de carrascos, mostra uma característica curiosa da personalidade do jesuíta. Polêmica - Ele acompanhou os últimos dias de vida de um francês calvinista condenado à morte por porte de arma. Minutos antes do enforcamento, comunicou que o nó tivera sido mal feito e que o condenado podia não morrer. Sua preocupação, segundo relatou mais tarde, era que o réu se desesperasse e acabasse desacreditando na salvação. "O Vaticano interpretou a ação como um ato de caridade, mas houve muitas discussões sobre isso", conta.
O teatro de Anchieta não fez escola, mesmo porque seus textos ficaram dispersos até o século passado. Uma tradução pioneira no Brasil, feita em 1954, possibilitou a montagem do "Auto de São Lourenço" por Guilherme de Almeida. "Sua grande contribuição, no entanto, é histórica; ele foi o precursor do teatro no Brasil", conclui Navarro.