A primeira vez que assisti a um filme de David Lynch foi em 1997, quando tinha 17 anos, e havia acabado de me mudar para Londrina para estudar Jornalismo na UEL. O filme era “Estrada Perdida” (Lost Highway), um dos filmes mais radicais daquele que é certamente o grande surrealista do cinema contemporâneo. Me lembro de estar sozinho no Cine Teatro Ouro Verde, no início da tarde, em um espaço para quase mil lugares.

“Estrada Perdida” era um filme sombrio, repleto de camadas impenetráveis, e com uma trilha sonora angustiante. Para alguém que já sonhava em dirigir filmes, estar diante da obra de Lynch era uma espécie de estímulo irrecusável: “Eu acho que as ideias existem fora de nós mesmos. Eu acho que em algum lugar, estamos todos conectados em alguma terra muito abstrata. Mas em algum lugar entre lá e aqui as ideias existem”. Lynch se conectava a nós, espectadores, sobretudo através do nosso inconsciente, justamente onde os nossos desejos e sonhos mais ocultos permanecem. Daí ser quase impossível resistir a esse universo criado pelo cineasta.

OS PRIMEIROS FILMES

Nascido no meio-oeste americano em 1946, longe dos grandes centros, Lynch é um cineasta da margem: mesmo tendo sido sempre fiel ao seu imaginário particular, ele conseguiu produzir filmes para Hollywood e mesmo assim manter uma proposta estética mais alinhada a um certo Cinema de Invenção.

Ao lado de Godard, foi o grande criador de formas cinematográficas nos últimos 50 anos: aquele que ousou mesclar gêneros populares como o melodrama a narrativas fantásticas repletas de psicodelia e surrealismo: “Gosto de fazer filmes porque gosto de entrar em outro mundo. Gosto de me perder em outro mundo. O cinema para mim é um meio mágico que faz você sonhar... permite que você sonhe no escuro. É simplesmente uma coisa fantástica, se perder dentro do mundo do filme”.

Sua trajetória se inicia entre o Cinema e as Artes Plásticas: entre 1967 e 1974, dirigiu sete curtas, que já apresentavam um universo distorcido, fragmentado, repleto de dissonâncias visuais e sonoras, quase como se fossem pinturas vivas. Sua primeira obra a chamar a atenção foi “Eraserhead”, longa lançado em 1977, e que apresenta uma trama doméstica em meio a uma atmosfera sufocante. Enquanto Henry Spencer lida com sua namorada e seu filho recém nascido, mergulhamos em uma atmosfera melancólica árida, em que tudo remete a um clima decadente. Em meio a gritos e ruídos opressivos, surge aquela que seria a primeira cena de Lynch que reconhecemos como a marca de seu cinema: Laurel Near é uma garota com o rosto transfigurado que canta de forma doce e patética: “No Paraíso, está tudo bem”. Essa mescla entre o delicado e o grotesco, o suave e o exagero, o lirismo e o surreal é a marca que Lynch começa a empregar em cada filme, criando variações de tons e paisagens.

Menos radical em sua trama, “O Homem Elefante” é esteticamente mais austero, equilibrando uma fotografia sóbria a um trabalho de direção de arte meticuloso, em que cada objeto de cena parece pertencer àquele mundo de forma orgânica. Lynch consegue construir um clima profundamente sombrio, mas com um viés humanista extremamente sólido: "As pessoas dizem que meus filmes são sombrios. Mas, assim como a claridade, a escuridão vem de um reflexo do mundo. A questão é que tenho essas ideias pelas quais realmente me apaixono”.

PARA ALÉM DO CINEMA

Com esses dois filmes, Lynch se consolida no cenário internacional e passa a alternar grandes produções e filmes mais pessoais. Com “Veludo Azul”, nova consagração de público e crítica: o filme investiga um crime sórdido em uma cidade pequena a partir de personagens excêntricos e repulsivos. Em meio à violência, Lynch insere cenas de extrema elegância, como a sequência em que Isabella Rossellini canta a música tema do filme.

Essa estética melodramática e surreal irá permanecer em obras como “Coração Selvagem” (Wild at Heart), Palma de Ouro em Cannes em 1990; “Estrada Perdida”; “Cidade dos Sonhos” (Mulholland Drive) de 2001; e “Império dos Sonhos” (Inland Empire), de 2006, seu último longa lançado nos cinemas. No entanto, a obra que mais sintetiza o universo particular de Lynch é justamente uma série de TV: “Twin Peaks”, projeto que contou com 2 temporadas entre 1989 e 1991, e que teria uma ‘season finale’ em 2017.

“Twin Peaks” mostra a investigação sobre quem matou Laura Palmer, uma jovem que mantinha relações secretas com o submundo local de uma cidade do interior. Ao conduzir a trama como se fosse uma ‘soap opera’, Lynch cria uma atmosfera inebriante de delírio e tensão a partir de personagens bizarros e extremamente cativantes. Mais do que uma lógica narrativa de investigação, o que importa em “Twin Peaks” é seguir uma espécie de fluxo, que sempre nos levará para caminhos improváveis, mas de alguma forma transformadores. Composta por 18 episódios, a terceira temporada oferece momentos de puro cinema surreal: o episódio 8, “Got a Light”, por exemplo, em preto-e-branco, é uma das realizações mais notáveis da história não só da TV, mas do Cinema. Pois a maior contribuição de Lynch tenha sido justamente essa: mais do que um diretor, foi um artista completo que, para a nossa sorte, também se expressou pelo Cinema. Por isso, enquanto houver mundos estranhos a serem revisitados em estradas perdidas, ainda haverá esperança no futuro do cinema. Tudo graças a você, David Lynch!

LYNCH E SUA RECEPÇÃO EM LONDRINA

Considerado o filme favorito de Stanley Kubrick, “Eraserhead” não chegou a ser lançado nos cinemas brasileiros. Me lembro de só ter conseguido assistir ao filme em 1998, quando Claudio Yuge, colega do curso de Jornalismo, conseguiu uma cópia pirata com legendas em japonês. A única exibição do filme em Londrina ocorreu em outubro de 2018, dentro do cineclube Sessão Kinopus, quando exibimos uma versão restaurada no Auditório da Associação Médica de Londrina. Após a sessão, realizamos um debate, e o público presente apresentou várias interpretações sobre o universo onírico do filme.

O primeiro filme de Lynch a ser exibido nos cinemas de Londrina foi “O Homem Elefante”, no Cine Teatro Ouro Verde, em 1980. De acordo com Carlos Eduardo Lourenço Jorge, chefe da divisão de Cinema da UEL entre 1978 e 2023, o filme foi uma das grandes bilheterias daquele ano, chegando a permanecer em cartaz por mais de uma semana. Quem se lembra dessa sessão com entusiasmo é Ariel Palacios: ao comentar a obra de Lynch na Globonews na semana passada, o jornalista se lembrou com nostalgia de ter conhecido Lynch ao assistir a “O Homem Elefante” no Ouro Verde.

“Veludo Azul” também foi exibido no Ouro Verde. Apesar de ter sido muito bem recebido pelo público, Carlos Eduardo se lembra de como achou o filme “esquisito” à época. O jornalista e cineasta Luciano Pascoal se lembra de “ter saído desnorteado do cinema”. Alguns anos depois, em 1995, Pascoal iria ter sua primeira experiência em um set ao participar do filme “Solar Tatoo”, um curta-metragem surreal rodado em Cuba em 16mm preto-e-branco.

Exibido no Ouro Verde em 1997, “Estrada Perdida” foi um filme que atraiu um público renovado para a obra de Lynch. Muitos que ainda não haviam conseguido ver a série “Twin Peaks” nos anos 1990, foram pesquisar o universo de Lynch. A grande surpresa foi que em 1999 Lynch lançou um filme comovente, de trama familiar, e que foi produzido pela Disney: “História Real”. Carlos Eduardo estava presente na Conferência de Imprensa em Cannes em 1999, e se lembra de que o filme foi mal recebido. Para ele e para o produtor Caio Julio Cesaro, esse é o melhor filme de Lynch.

Em novembro de 2011, o então deputado londrinense Alex Canziani promoveu uma vídeo conferência com o realizador norte-americano na Câmara dos Deputados em Brasília. O objetivo era discutir a importância da meditação transcendental - prática defendida pelo cineasta - e tentar entender as possibilidades de promovê-la entre as crianças nas escolas brasileiras.

Na próxima terça (28), a produtora Kinopus e o Espaço Villa Rica vão promover uma Sessão Homenagem em memória do cineasta norte-americano: será exibido às 20h, em sessão única, o documentário “David Lynch - A Vida de um Artista” (David Lynch - The Art Life), uma coprodução entre a Dinamarca e os EUA dirigida por Jon Nguyen, Olivia Neergaard-Holm e Rick Barnes. O filme será exibido em formato DCP e tem classificação indicativa para 14 anos.

No ano passado, fizemos uma enquete perguntando ao público que Mostra eles gostariam de ver no Villa Rica. O cineasta mais votado foi justamente David Lynch. A expectativa é que ainda em 2025 essa Mostra seja realizada.