Quando uma criança diz que viu o dente do telhado mastigar o vento e, de tão saboroso, babar chuva doce, a tendência é que os adultos ao redor comecem a rir de tamanho disparate. Uma divagação da mente infantil desprovida de razão que instaura o riso.
Quando um adulto diz que viu o telhado tremer de medo e chorar suco de nuvem diante de um desfile de relâmpagos, a tendência é que outros adultos considerem um belo argumento poético. Uma criativa metáfora para a construção de um texto literário.
A partir dessa constatação, pode-se dizer que o reservatório poético da mente infantil e adulta é muito similar. A diferença talvez esteja na torneira da arte, na maneira que cada um deixa a água correr. Na forma adequada de abrir a torneira para controlar o fluxo de água desejada. Em outras palavras, técnica.
Um pequeno livro de poemas lançado pela Editora Companhia das Letrinhas aparece para lembrar que o absurdo é um humorado componente de qualquer mente. Basta abrir a torneira que a água corre. No caso, para regar o território da poesia. ‘‘De Cabeça Pra Baixo’’, escrito por Ricardo da Cunha Lima e ilustrado por Gian Calvi, reúne 17 poemas onde o bom-humor e o absurdo jogam bola no mesmo time. Ambos no ataque.
Em suas páginas pode-se encontrar coisas como um sapato asseado que gostava de tomar banho de perfume e acabou se casando com o par ideal, uma meia que adora pintar-se com batom; uma abelha de praia que fazia mel salgado; um óculos com a mania de chorar no cinema; um aspirador de pó alérgico justamente a pó; uma invenção útil e prática, o ‘‘palinete’’, um mistura de palito de dente com cotonete que proporciona a limpeza dos dentes e da orelha ao mesmo tempo; uma manteiga que tinha medo de ficar presa dentro da geladeira; uma casa que vivia correndo pela cidade para namorar o hospital; um balão que tinha pânico de altura, um gigante que a cada peido produzia um furacão; um pé de alface que gostava de voar na hora do almoço e muito mais.
‘‘De Cabeça Pra Baixo’’ não é apenas um livro de poemas, mas de como eles são construídos. Apresenta versos e, na sequência, mostra como eles são feitos. Explica, de maneira simples, o que existe por traz das palavras: a técnica. Ricardo da Cunha Lima apresenta um manual básico de poesia. Ensina coisas básicas como o que é verso, estrofe, ritmo, rima (e os tipos existentes), métrica, aliteração, antítese, ambiguidade, refrão, etc. Também revela a estrutura das formas fixas (como o soneto, limerique, vilancico, vilancete) e até a diferença entre ‘‘poesia’’ e ‘‘poema’’. Ou seja, uma verdadeira aula de como os poemas são construídos, os segredos que geralmente são guardados em grossos livros que pouca gente entende.
‘‘De Cabeça Pra Baixo’’ de Ricardo da Cunha Lima, ilustrações de Gian Calvi, Editora Companhia das Letrinhas, 56 páginas, R$ 18,50.