Lançado na última quinta-feira (25) no multiplex do Shopping Aurora, em quase clandestinidade (e com prazo de validade até a proxima quarta, 24), “O Sequestro do Papa” (título brasileiro estúpido porque mal intencionado), “Rapito”, do original italiano “Rapito/Sequestrado”, de Marco Bellocchio, é do início ao fim um filme-monumento esculpido com as impressões agora literalmente digitais do veteraníssimo combatente, maestro Marco Bellochio.

A fotografia sombria e o tremendo rigor do que é narrado não deixam dúvidas. O diretor mostra-se aos 84 em plena forma. A verdadeira história é de meados do século XIX, quando a Igreja Católica decidiu raptar – por vias canônicas legais, diga-se – e separar uma criança judia de sua família porque uma empregada decidiu batizá-la secretamente.

O diretor tão obcecado por sequestros (há duas obras primas dele sobre Aldo Moro, ambas exibidas no Cine Com-Tour/UEL) oferece um vademecum de cinema enérgico e febril, de cinema obsessivo inflamado pela certeza da injustiça. Na verdade, pode ser criticado por certa tendência (um tanto enganosa) dos personagens serem completamente bons ou teimosamente vilões. Seja como for, é impossível resistir ao gesto alucinatório deste acontecimento tremendo ocorrido em Bolonha em 1858.

O que a princípio parecia ser apenas um acontecimento local, sem grandes consequências, tornou-se fonte de escândalo nacional e até internacional, num tempo em que os absolutismos – a começar por aquele do Papa Pio IX – estavam em crise, impulsionados pela forças progressistas dos novos republicanismos.

Apoiada por sua comunidade, a família do menino luta a todo vapor para recuperar o filho, mas o Papa vê no pequeno Edgardo (que não foi o único judeu raptado) a desculpa para se afirmar no poder e reforçar seu mandato. “Non possumus”, alega o pontífice quando lhe exigem a devolução da criança, valendo-se desta recusa cuja única sustentação era apenas o dogma religioso.

A primeira parte do filme mergulha o espectador no quotidiano de uma família judia burguesa da época, alterada emocionalmente pelo rapto de um dos seus filhos. Bellocchio injeta poder ao dramático conflito de indivíduos que lutam contra os abusos do mando institucional. A segunda parte mostra a capacidade sedutora do catolicismo através de suas liturgias e de sua retórica maquiavélica. Embora neste ultimo segmento o desgosto causado pela rejeição do protagonista à família que tanto o ama seja desequilibrado pela atenção excessiva ao cenário histórico.

Como é comum em Bellocchio, o filme alterna simultaneamente um conflito íntimo – o do menino que ama sua família e sua crença, mas, joguete de seus algozes, está disposto a se converter ao catolicismo como forma de sobrevivência – com um drama épico, até mesmo operístico, reforçado por uma virtuosa montagem paralela que alterna os concílios do Vaticano com as conspirações de Bolonha.

Esses paralelos estão também nos sonhos simétricos que Bellocchio coloca em cena com maestria, sempre com aquele espírito dessacralizante que tem seu cinema: enquanto o Papa sonha com culpa que é circuncidado, o pequeno Edgardo por sua vez sonha que liberta Jesus da cruz, pregado por um prego, para não ter que carregar o pecado que ele acredita carregar no sangue.

O cinema de Bellocchio é feito dessas complexidades – históricas, religiosas, psicanalíticas –, mais vitais e rebeldes do que nunca. Com este filme, o diretor assina um novo exemplo da sua prática exemplar de um cinema histórico vibrante na narrativa, cuidadoso no evocativo e contundente no político.