O punk morreu, viva o punk
Lançamento de sucesso, "Cruella" resgata o punk para customizar seu vilões com uma fachada irreverente e anarquista
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 17 de junho de 2021
Lançamento de sucesso, "Cruella" resgata o punk para customizar seu vilões com uma fachada irreverente e anarquista
Carlos Eduardo Lourenço Jorge
Morreu tantas vezes que já perdemos a conta, mas se algo ameaça levantar sua certidão de óbito permanente é a comercialização de um movimento que os roteiristas de “Cruella” se apropriaram para customizar um dos vilões mais carismáticos do universo Disney. É um golpe brilhante, com o qual a marca que inventou celebridades como Mickey, Donald & Cia capitaliza o descontentamento de uma geração que exige ícones domesticados pelo sistema, mas com uma fachada entre irreverente e anarquista, articulada através de uma história de origem que parte de uma infância traumática para crescer no âmbito da adolescência dickensiana da protagonista, na Swinging London na década de 1960.
O filme, que certamente seria evento globalizado não fossem esses tempos ainda pandemizados, é sempre menos do que faz o espectador intuir pela via de seu espetacular desenho de produção – pode-se imaginá-lo nas mãos de alguém visualmente super-dotado como Gore Verbinski (“Piratas do Caribe”) – porque quem assiste com boa memória é forçado a fechar o círculo que o liga àqueles “101 Dálmatas” de 25 anos atrás, e ele não pode se dar ao luxo de ser excessivamente fiel ao seu título. Entre os méritos de “Cruella” está o rítmo que o diretor Craig Gillespie imprime em uma sucessão de cenas em que a Baronesa von Hellman e Cruella de Vil se confrontam, enquanto como pano de fundo estão apenas os fieis escudeiros da vilã bicolor, Jasper/Joel Fry e Horace/Paul Walter Hauser, aquela dupla que detém o beat, o compasso forte, o andamento humano do filme.
Além do trabalho envolvente/consistente de Emma Stone em personagem melhor interpretado do que escrito, “Cruella” se sai bem por seu quase onipresente dinamismo narrativo, sua livre mistura de estilos, gêneros e influências, situando-se em algum lugar entre o conto original da Disney e um filme como “O Diabo Veste Prada”, entre outros que podem ser percebidos aqui e ali em seus 134 minutos de duração – um quarto de hora menos, por favor ? Outro elemento saboroso resulta de sua ambientação: em nível espacial e temporal, o filme se passa na Londres industrial dos anos 1960 e 70 e, embora a fotografia de Nicolas Karakatsanis faça uma tentativa de retratar as estruturas cinzentas e decadentes, o foco principal está no personagem mais bem construído do filme: os vestuários, obra impecável da laureada designer Jenny Beaver, que criou os looks das vilãs Cruella e Baronesa, um festim visual. É o berço da moda mais
revolucionária, o lugar perfeito, próximo à Carnaby Street, epicentro da mitológica Swinging London, aquele palco onde desfilaram formidáveis egos, cenário da estética cravada no design de alta costura concretizado pelas duas protagonistas de “Cruella”.
ATÉ O PUNK ESTOURAR...
O enredo geral, com sua dose particular de vingança, acaba sendo o menos importante. É bom saber para que tipo de espectador o filme foi idealizado e está sendo visto. Consistente na revisão do plano de estudos mercantilistas da Disney que ele propõe, há uma trilha musical emblemática da época retratada (às vezes vitimada por anacronismos pouco recomendáveis), mas com algum excesso de canções: na primeira metade, cada sequência começa com um tema rock ou pop, com uma postura maneirista a tal ponto que as imagens parecem estar a serviço das músicas, e não o contrário. O problema não é a incorporação dessas canções, mas sua relação nula com o enredo; eles são incorporados apenas para fazer as cenas parecerem poderosas, não importando para onde a atenção do espectador esteja direcionada.
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