Faltando três dias para o Oscar, já há vários vereditos, a quase totalidade deles ditada pelo gosto popular (leia-se clamor das bilheterias), fator decisivo para manter acesa a euforia da indústria hollywoodiana, que persiste confiante na cruzada pelo Santo Graal da retomada pós-pandemia – puxada pelos números impressionantes do segundo “Avatar” e de “Wakanda”, e pelos ultrasônicos trovões pilotados por Tom Cruise em “Maverick”. Mas além deste carro chefe que sacudiu o ânimo, a confiança e a disposição do grande público, que por dois anos ou mais esteve compulsoriamente às voltas com o marasmo de sua nova ergonomia de entretenimento, baseada no bordão “sofá, doce e melancólico sofá”, outros apelos de talento e força considerável surgiram no horizonte.

Mas o exibidor – inimigo implacável daquilo que não explode, não sangra e muito menos mostra pessoas pensando e refletindo sem adrenalina na veia – como sempre trabalha contra quem tem expectativas, no caso o espectador, deixando no limbo títulos importantes. Como por exemplo “Tár”, de Todd Field, “Triângulo da Tristeza", de Ruben Östlund e “Entre Mulheres”, de Sarah Polley, aliás o único dirigido por uma cineasta. E não por coincidência este trio de oscarizáveis permanece inédito em Londrina, sem que o espectador possa gostar deles ou não; mas, como é sabido há quase treze décadas (a idade do cinema), antes de aceitar ou recusar qualquer título é preciso exibi-lo.

Gostando-se ou não, “Tár” é um sucesso, já tendo conquistado cerca de 60 prêmios internacionais (além das seis indicações ao Oscar, incluindo filme, direção e atriz em papel principal). Também gerou muitas conversas apaixonadas, artigos e interpretações.

Escrito e dirigido por Todd Field, é interpretado (dominado, com justiça) por Cate Blanchett como a ambiciosa regente Lydia Tár. Ao longo do filme nunca se tem certeza do que é “real” e do que é imaginado. Ela está constantemente higienizando as mãos e tomando pílulas e frequentemente andando durante o sono. Como Lady Macbeth, ela é uma obra de ficção. O filme gerou debates acalorados entre críticos musicais e profissionais da área. Uma regente em particular, por exemplo, lançou uma visão divergente e muito pessoal. “Fiquei ofendida como mulher”, escreveu Marin Alsop, regente da Sinfonica de Baltimore. “Fui ofendida como maestrina, fui ofendida como lésbica”.

Em seu terceiro filme em duas décadas, Todd Field lida com uma questão atual de uma forma mais gráfica. Seu primeiro trabalho, “Entre Quatro Paredes”, girava em torno do drama de pais que perdem o filho. No segundo, “Pecados Intimos”, retratava uma comunidade fechada em que se misturavam infidelidade, problemas de paternidade e pedofilia. E neste terceiro, “Tár”, ele vai direto ao ponto: os abusos de poder na música clássica.

A magnífica Cate Blanchett, que sabe ser empática e perturbadora de começo ao fim, é uma compositora e maestrina midiática. Está no auge de sua vida: tem uma parceira estável com quem tem uma filha, se prepara para gravar um álbum – que só sairá em compacto e não em vinil, enfatiza várias vezes – e dirige a Filarmônica de Berlim com mão firme. Embora se possa intuir sobre aspectos obscuros em relação a uma estagiária da orquestra que se suicidou, a ação corre com outras tensões: dúvidas com sua assistente, a atração que sente pela nova violoncelista ou a necessidade de se livrar de seu assistente de direção. É na parte final que tudo é ativado, de forma precipitada, e o tom do filme como um todo muda para que as imagens, cada vez mais abruptas, sejam punitivas pelos erros e abusos cometidos por Lydia Tár. A tese é clara. A resolução é excessivamente moralista, embora não manche o curso hipnótico da história. “Tár” é um filme mais indeciso do que parece. Por detrás do seu rigor formal, no subtexto de um fascinante estudo de personagem em chave épica, esconde-se uma dúvida razoável: a de discutir a cultura do cancelamento, deixando pontas soltas. E Cate Blanchett pode não levar esta estatueta, o que seria imensa e imperdoável gafe cultural. Mas da Academia pode-se esperar qualquer coisa. É histórico.