“A Mão de Deus”, “Belfast”, “Licorice Pizza”. Ao incluir nas nominações deste ano três títulos encharcados de recordações, a Academia de Hollywood parece ter aberto um canal para filmes construídos com aquela pilha de espelhos quebrados que Jorge Luis Borges dizia ser a memória, “aquele museu quimérico de formas inconstantes”. E de que material são feitas as memórias, que tanto justificam quanto condenam, que tanto servem para a reconciliação quanto para a guerra?

Se a memória tivesse pontos cardeais, o sul da memória seria aquele território impossível e quente onde a verdade não importa e a realidade se veste com a terna roupagem da fábula. Na ânsia de recuperar o paraíso perdido da infância, nos tornamos maquiadores de memórias, inventores inspirados da história que nossas vidas contam. “Você mente mais do que o necessário por falta de fantasia: a verdade também se inventa”, escreveu o poeta espanhol Antonio Machado. E o prolífico ator, escritor e diretor Kenneth Branagh visita o sul da memória nesta viagem ao seu próprio passado, neste olhar sonhador de sua infância na tumultuada Belfast dos anos 1960 e início dos 70.

Em agosto de 69, a coexistência entre a minoria católica e a maioria protestante a favor da continuidade da adesão ao Reino Unido explodiu em mil pedaços. O surgimento de grupos paramilitares violentos, o envio de tropas britânicas e a separação de duas comunidades em guetos tranformaram a cidade de Belfast em campo de batalha. E é nesta cena guerreira que o menino Branagh desdobra sua imaginação para nos contar essa mentira lindamente idealizada, esse retrato gentil da época das grandes revelações em que o amor acaba de impondo romanticamente sobre a violência sectária e irracional. As misérias do mundo adulto.

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. | Foto: Divulgação

“Belfast”, o filme que estreia nesta quinta-feira (10) nas salas brasileiras, foge de qualquer discurso ideológico para ridicularizar aos olhos de uma criança aquele conflito religioso e politico e que ainda mantém os idosos aleatoriamente ocupados. Neste álbum de fotos do sul da memória, tudo é abordado numa perspectiva pura e infantil que prefere

centrar-se na vizinhança e na vida familiar, que se detém nas dificuldades do quotidiano para nos mostrar que há sempre espaço para a esperança.

Nesse sentido, Branagh nos mostra pais que parecem estrelas de cinema: ele é trabalhador e decente, ela é abnegada

e honesta; e alguns avós eternamente apaixonados, donos de toda a sabedoria que cabe na mente de uma criança. É, todavia, o retrato de um momento extremamente difícil e duro, mas do ponto de vista de uma criança capaz de transformar o mais cruel no mais engraçado. É, na verdade, um autoretrato, mas convicto e muito consciente da própria

impostura de todos os autorretratos (e ainda mais neste tempo de selfies).

Esta delicada história da perda da inocência se baseia na matéria de que são feitos os sonhos para nos transportar, com uma impecável fotografia em preto e branco e com a música de Van Morrison ao fundo, para as ruas da infância do autor, para aquele tempo em que tudo o que acontece ao redor da criança que fomos forja o adulto que seremos.

E é também uma bela homenagem ao cinema (são inúmeras as referências cinéfilas que colorem a história) para uma geração que aprendeu a fantasiar sobre outras vidas e outros mundos através do cinema. O que está colocado é a textura do tempo; a própria espessura do cinema como ferramenta para moldar, com efeito, o espaço sempre sagrado da memória.

Como Cuarón fez em “Roma”, como Sorrentino em “A Mão de Deus”, como Tarantino em “Era uma Vez em Hollywood”. É um cinema sobre o passado, mas também sobre o próprio cinema. É o cinema que deposita no quarto escuro o poder hipnótico, reconstruindo um mundo tão perfeitamente único quanto talvez perdido. Para sempre.

'Belfast': filme que estreia nesta quinta-feira (10) no Brasil, foge aos discursos ideológicos para ridicularizar aos olhos de uma criança um conflito político e religioso
'Belfast': filme que estreia nesta quinta-feira (10) no Brasil, foge aos discursos ideológicos para ridicularizar aos olhos de uma criança um conflito político e religioso | Foto: Divulgação

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