Para seu primeiro filme em uma década, e provavelmente o último, o sempre iluminado roteirista e diretor Hayao Miyazaki revisita temas que sempre marcaram sua carreira – os frágeis laços familiares, o delicado equilíbrio do mundo natural – para contar uma história bela e dolorosa sobre um garoto de 11 anos, de luto pela morte da mãe. Que pode realmente não ter morrido.

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“O Menino e a Garça” marca o retorno deste sempre justamente celebrado autor de animação (que anunciou sua aposentadoria após seu filme anterior indicado ao Oscar de 2013, “Vidas ao Vento”). É um filme cheio de imagens impressionantes que variam do sublime ao pesadelo. Baseando-se em elementos da sua própria infância, Miyazaki sonhou com um ambiente fantástico em que tudo parece possível – incluindo o potencial para se reconstruir.

"O Menino e a Garça" traz cenas impressionantes, um visual de impacto para uma história que emociona
"O Menino e a Garça" traz cenas impressionantes, um visual de impacto para uma história que emociona | Foto: Divulgação

Estreando no Japão em julho do ano passado, sem publicidade ou trailers, “O Menino e a Garça” foi um evento sem precedentes no país natal de Miyazaki, marcando a maior e mais estrondosa abertura em todos os tempos de um filme do diretor. Ressonância semelhantre vem marcando a estreia da animação por onde quer quer que ela seja programada. Aos 82 anos, Miyazaki está entre os cineastas vivos mais reverenciados, e seus fãs, aos milhares, sem dúvida estão em êxtase.

No meio da Segunda Guerra Mundial, o jovem Mahito (dublado por Soma Santoki) fugiu de Tóquio para o campo com seu pai, Shoichi (Takuya Kimura). O menino ainda está arrasado com a morte de sua mãe Hisako, que morreu em um incêndio. Shoichi, no entanto, seguiu em frente com sua vida, casando-se com sua cunhada Natsuko (Yoshino Kimura), irmã mais nova de Hisako, com um bebê a caminho. Mahito está tendo problemas para se ajustar a esse novo arranjo – ele fica desconfortável quando os moradores locais mencionam o quanto Natsuko se parece com a falecida Hisako – e indícios de seu sofrimento mental aparecem quando um dia ele bate a cabeça numa pedra. Mas logo Mahito conhece uma garça falante e bizarra, que na verdade tem alguém dentro dela (Masaki Suda), alegando que a mãe do menino não está realmente morta.

Trabalhando com seu produtor de longa data, Toshio Suzuki, e com seu habitual compositor Joe Hisaishi, Miyazaki volta sem esforço a seu estilo peculiar, que combina humor travesso com temas sérios, uma animação altamente naturalista até que os personagens se aventurem em reinos paralelos, onde visuais surpreendentes ocupam o centro da tela. (“Há muita coisa estranha neste lugar”, observa um personagem no início de “O Menino e a Garça”, declaração calorosamente recebida pelos adoradores do cineasta que saboreiam suas viagens ao surreal.)

Quando a garça guia Mahito por uma terra onde os vivos e os mortos se misturam, o menino descobrirá, entre outras coisas, de onde realmente vêm os bebês, com Miyazaki nos apresentando aos Warawara, criaturinhas que parecem balões com pés, mãos e sorrisos felizes. Não muito diferente de “A Viagem de Chihiro”(2001), “O Menino e a Garça” é a saga de uma criança impressionável em uma odisseia mágica, e Miyazaki (com a ajuda do diretor de arte Yoji Takeshige) pontilha a jornada de Mahito com um visuais impressionantes, uns após outros. Cada vez que o filme nos apresenta um momento fofo ou tranquilo, a história muda rapidamente de rumo, demonstrando que os terrores mais inesperados também existem neste reino paralelo — sejam pelicanos carnívoros ou temíveis periquitos. Até a garça cinzenta é uma visão perturbadora, com a grande do homem e os dentes ameaçadores projetando-se do bico do pássaro.

Nenhum desses visuais impressionantes teria importância, no entanto, se não fosse pela forte corrente emocional que Miyazaki traz para o processo. A partitura centrada no piano de Hisaishi é uma maravilha, destacando o desejo interminável de Mahito por sua mãe enquanto o menino procura pistas sobre o paradeiro dela (na jornada, aprendendo muito sobre a surpreendente conexão de seus ancestrais com o planeta). Muitas vezes em seu trabalho, Miyazaki lamentou o desequilíbrio entre a humanidade e a natureza, mas seu último filme parece especialmente tenso nesse aspecto.

“O Menino e a Garça” vê a sociedade com boa dose de pessimismo, mantendo a esperança de que indivíduos e famílias possam ajudar a curar essas feridas profundas. O fato de o cineasta conseguir mesclar esse apelo universal com a história íntima de um menino que faz as pazes com suas tragédias pessoais é ainda mais impressionante. Esta não é a primeira vez que Miyazaki afirma ter feito seu último filme; mas, se for, é uma despedida totalmente satisfatória e agridoce.

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