Uma recente declaração de Chico Buarque afirmando que não pretende mais cantar a música “Com Açúcar, Com Afeto” para atender ao pedido de feministas que identificaram traços machistas na letra da composição, reacendeu o debate sobre como o machismo estrutural está presente em vários clássicos do cancioneiro nacional. A polêmica em torno da canção composta em 1967 foi gerada após o lançamento do documentário “O canto livre de Nara Leão”, lançado pela Globoplay em comemoração aos 80 anos de nascimento da artista. Em depoimento à produção da minissérie, o compositor se defendeu ao lembrar que a composição foi feita por encomenda da cantora que a eternizou.

“Ela [Nara Leão] me pediu a música e falou: ‘Eu quero agora uma música de mulher sofredora’”, lembrou Chico ao afirmar que sempre estará do lado da luta feminista e que por isso decidiu não mais cantar a canção. “Vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim. Elas têm razão. Eu não vou cantar ‘Com Açúcar, Com afeto’ mais e, se a Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente”, refletiu Chico no documentário, explicando sua decisão.

Essa não é a primeira vez que uma letra assinada por Chico é acusada de conter um tom machista. Lançada em 2017 no disco “Caravana”, a música “Tua Cantiga” sofreu acusações de machismo por conta dos versos que abordam um relacionamento extraconjugal no qual o marido infiel canta juras de amor à amante. “Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu capricho exigir/ Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir”. Na época da polêmica o compositor não deu entrevistas sobre o tema, mas postou uma reflexão em seu perfil no Facebook: “‘Machismo é ficar com a família e a amante”.

Outros grandes compositores também foram acusados de escrever versos machistas. Um exemplo clássico está presente de forma explícita na música “Ai, que Saudade da Amélia”, composta por Mário Lago e Ataufo Alves. Lançado em 1940, o famoso samba descreve o perfil estereotipado da mulher submissa que não tinha vaidade e aceitava sofrer privações para preservar o amor do seu parceiro.

Algumas composições vão além da submissão ao retratar com naturalidade a violência doméstica sofrida pelas mulheres. Um desses casos é o hit "Se te agarro com outro, te mato", versão de um hit homônimo do cantor e compositor argentino Cacho Castaña que Sidney Magal interpretava na década de 1980 e cuja letra ameaçava: "Se te agarro com outro, te mato! Te mando algumas flores e depois escapo". Ou então da música "Piranha", de Bezerra da Silva, que cantou "Eu só sei que a mulher que engana o homem merece ser presa na colônia/ orelha cortada, cabeça raspada/ carregando pedra pra passar vergonha".

Chico Buarque: “Vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão"
Chico Buarque: “Vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão" | Foto: Lucas Tavares/Folhapress

Revanche feminista

Após sofrerem caladas durante décadas, muitas mulheres resolveram dar voz a seus desejos, impondo limites e reivindicando igualdade de gênero. A debandada feminista encontrou diversas representantes na música popular brasileira a partir da década de 1970. A virada de mesa foi cantada em verso e prosa por grandes vozes, como Simone (“Começar de novo”), Gal Costa (“Folhetim”), Fafá de Belém (“Sob Medida”), Vanusa (“Mudanças”) e Joice (“Feminina”), entre outras.

A mulher do fim do mundo

Sentindo na pele os efeitos do machismo estrutural e do racismo, Elza Soares levantou todas as bandeiras possíveis em prol da luta feminista pela igualdade de gênero. No aclamado disco “A Mulher do Fim do Mundo”, lançado em 2015 e ganhador do Grammy Latino, ela deu voz à canção se tornou um hino contra a violência doméstica.

Composto por Douglas Germano o samba intitulado "Maria da Vila Matilde" incentiva as vítimas de agressão a denunciarem a violência dos parceiros. “Cadê meu celular?/ Eu vou ligar pro 180/ Vou entregar teu nome/ E explicar meu endereço/ Aqui você não entra mais/ Eu digo que não te conheço”.

Leia mais: Ouça a última entrevista que Elza Soares concedeu para a FOLHA

Resposta da Rita, SEGUNDO ANA CAROLINA

No samba “A Rita”, Chico Buarque acusa a mulher amada de ser responsável pelo fim do romance vivido pelo personagem da canção e de levar embora diversos objetos do casal após a separação. Em tom bem-humorado, Maria Bethânia sugeriu que a cantora e compositora Ana Carolina compusesse uma música mostrando o término do relacionamento sob a ótica da mulher que sofreu as acusações consideradas injustas por ela.

Ana Carolina aceitou o desafio e compôs o divertido samba “Resposta da Rita”, que integra o repertório do álbum #AC, lançado em 2013. A cantora e compositora mineira convidou Chico Buarque para participar da gravação que traz os versos:

“Não levei o seu sorriso

Porque sempre tive o meu

Se você não tem assunto

A culpada não sou eu

*

Nada te arranquei do peito

Você não tem jeito faz drama demais

Seu retrato, seu trapo, seu prato

Devolvo no ato pra mim tanto faz

*

Construí meu botequim

Sem pedir nenhum tostão

A imagem de São Francisco

E aquele bom disco estão lá no balcão

*

Não matei nosso amor de vingança

E deixei como herança um samba também

Seu violão nunca foi isso tudo

E se hoje está mudo por mim tudo bem”

SITE DENUNCIA LETRAS MACHISTAS

Inconformadas com elementos do machismo estrutural presentes em letras de músicas dos mais variados gêneros, quatro mulheres se uniram para criar o site MMPB (Música Machista Popular Brasileira). Idealizado a partir da polêmica em torno do hit "Só Surubinha de Leve", do MC Diguinho, que após ser acusada de fazer apologia do estupro foi retirada de plataformas de streaming, o site criado em 2018 e que pode ser acessado no endereço virtual www.mmpb.com.br já conta com um acervo de mais de uma centena de canções.

Dentre as músicas denunciadas pelo site estão hits da MPB, do sertanejo, do pagode e do funk. Confira alguns exemplos:

"Só Surubinha de Leve" (Mc Diguinho)

"Taca a bebida, depois taca a p*** e abandona na rua"

"Trepadeira" (Emicida)

"Arrasa bi...scate. Merece era uma surra de espada de São Jorge. Um chá de comigo-ninguém-pode"

"Faixa Amarela" (Zeca Pagodinho)

"Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela. Vou lhe dar uma banda de frente. Quebrar cinco dentes e quatro costelas"

"Bruto, rústico e sistemático" (João Carreiro e Capataz)

"Na muié eu dei um jeito. Corretivo do meu modo. No quarto deixei trancada. 15 dias aprisionada"

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