O cinema e a mulher invisível
Os estereótipos de mulheres atrás das câmeras continuam a ser questionados, mas elas estão mudando os códigos das narrativas que sustentam a habitual misoginia
PUBLICAÇÃO
sábado, 07 de março de 2020
Os estereótipos de mulheres atrás das câmeras continuam a ser questionados, mas elas estão mudando os códigos das narrativas que sustentam a habitual misoginia
Carlos Eduardo Lourenço Jorge
Desde sua criação, as histórias que o cinema conta afetaram gerações de pessoas através de seus argumentos, conteúdos, imagens e ideias. A mulher teve um papel preponderante e significativo em tudo isso. Desde as criadoras pioneiras, no final do século 19, até as gerações mais recentes de diretoras e produtoras. O cinema, no entanto, como outras mídias, evoluiu sua linguagem ao mesmo tempo e ritmo que a sociedade.
Também na criação e ajuste de estereótipos. O tratamento que foi dado à mulher no cinema passou por todas as vicissitudes pelas quais passaram sua visibilidade e dependência ou sua invisibilidade e independência nos últimos cem anos.
É cada vez mais frequente descobrir no cinema visões que têm a ver com a situação atual das mulheres. A partir de pontos de vista muito diferentes, existem mais e mais mulheres cineastas, tanto diretoras quanto produtoras. E a sociedade responde, e o cinema reflete, com ênfase crescente, uma maneira de colocar o mundo e seus conflitos nos quais as mulheres são cada mais visíveis e responsáveis, contrapondo a visão masculina e patriarcal que ainda prevalece.
Há diferentes iniciativas que buscam conseguir esta mudança de paradigma. Do lado hollywoodiano, a incorporação de mais mulheres e negros entre os membros da Academia. Do lado de fora do “muro”, isto é, onde já há bons tempos sopram aragens de civilização, as seções de gênero e retrospectivas de mulheres cineastas em festivais de cinema garantem que realizações com perspectiva feminista tenham mais espaço e adquiram maior relevância, fazendo com que, quem participa desses eventos, comece a se acostumar a ver outros tipos de histórias e a sentir o apelo que elas têm.
Progressivamente, todos os estereótipos de mulheres representados nos filmes estão sendo questionados, produzindo a liberação de certas pautas sociais e provocando a realização de trabalhos com narrativas alternativas àquelas com conteúdos heteronormativos de sempre. É importante a visibilidade de outras narrativas, de mulheres e dissidências, já que o cinema é um dos modos de representação mais institucionalizados. E que se estimule e encoraje a representação de outros tipos de personagens e histórias. E que se abra espaço a essas iniciativas em festivais e premiações de notável reputação, gerando uma muito saudável reconfiguração do olhar, menos sexista e mais pluralista.
Mas apesar do avanço, uma alarmante estatística foi evidenciada em 2019 em pesquisa realizada pela BBC Culture - confira aqui.
A finalidade era encontrar os 100 melhores filmes estrangeiros (não em inglês) de todos os tempos. A lista foi divulgada, e nela apenas quatro foram dirigidos por mulheres.
A mesma falta de presença feminina foi constatada em cada uma das pesquisas anuais anteriores. Na de 2017, que definiu as 100 melhores comédias, também houve somente quatro diretoras. Entre os 100 melhores filmes do século 21, computados nestas duas primeiras décadas, foram incluídas 12 realizadoras, mas nenhuma entre os 20 primeiros colocados.
Em vista desses números, e com o intuito de compensar listas passadas, nas quais as mulheres eram sempre excluídas, a BBC decidiu dedicar uma lista exclusiva ao trabalho das diretoras para dar visibilidade à sua arte, deixada de lado não por critérios de qualidade, mas por uma questão de gênero. Contando com a expertise de 368 profissionais (críticos, jornalistas especializados e curadores de festivais; 185 mulheres e 181 homens votantes) de 84 países, a sondagem celebrou os 100 melhores filmes dirigidos por mulheres em toda a história do cinema. Em primeiro lugar ficou “O Piano”, da neozelandesa Jane Campion, Palma de Ouro em Cannes, 1993. A mais citada, com seis colocações , foi a belga Agnès Varda. O lançamento de 2019, em exibição em Londrina, “Retrato de uma Jovem em Chamas”, da francesa Celine Sciamma, ficou em 39º.