A premissa de “A Substância”, filme que premiou o roteiro da diretora francesa Coraline Fargeat no Festival de Cannes de maio ultimo, é uma das virtudes deste título que está no momento em lançamento mundial, Londrina inclusive. É uma ideia pouco original, mas desenvolvida de forma eficaz. Pelo menos durante boa parte das suas duas horas e vinte de duração.

A trama não foge muito do que Oscar Wilde imaginou para seu único romance, “O Retrato de Dorian Gray”. Assim como o livro, “The Substance” brinca de maneira selvagem com a convenção de assimilar juventude e beleza, como se fossem a mesma coisa. E joga também com o medo de envelhecer, munição feita de crueldade grosseira do empresário do show business (Dennis Quaid, surpreendente, substituindo o falecido Ray Liotta, a eleição primeira da diretora). Mas trabalha com variações, como mudar o sexo do personagem principal e alterar o período de vida que ele atravessa.

Ao contrário do jovem Dorian, Elisabeth Sparkle (Demi Moore, ótima) é uma atriz entrando nos sessenta que a conjuntura está cancelando para papeis melhores e sobrevivendo como estrela de fitness na TV. Ela é descartada quando seu corpo começa a mostrar sinais mais visíveis da idade que avança. Nesse momento, quase por acaso, a mulher receberá um convite misterioso para experimentar uma substância que promete lhe devolver “a melhor versão de si mesma”. A partir daí, a história articulará outras fontes de inspiração, como os elementos do enredo retirados da trama de “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, também clássico fantástico do período vitoriano.

Mas de novo vale a máxima: “não se esqueçam que vocês duas são uma só”. O fato de a protagonista desejar recuperar seus atributos perdidos em vez de manter os que possui, como no romance, não é uma mudança inocente. Muito menos se for uma mulher que vê sua vida desmoronando pela imposição ditatorial de um cânone debeleza que tem como pior inimigo o passar do tempo. Também não é por acaso que a atriz responsável por dar vida à personagem seja Demi Moore, que aos 61 anos questiona o postulado que estabelece que velhice é igual à feiúra. Mas é exatamente aí, quando a metáfora começa a ficar demasiado óbvia, que o filme apresenta sintomas de fadiga estrutural. E então me permito ser reiterativo e reforçar desde logo uma observação paralela.

Embora este incrivelmente mordaz “A Substância” seja uma peça de entretenimento bem construída, e embora o “trash” e o sangue em abundância possam ter efeito catártico e relaxante sobre a tribo de críticos neófitos/blogueiros cuja (falta de) paciência é frequentemente testada por trabalhos árduos que não cumprem sempre suas promessas, não devemos misturar nossos ovos, literalmente (para pedir emprestada a cena inicial do filme). Quaisquer que sejam suas qualidades – que certamente não faltam em “A Substância” –, a presença do filme competindo há pouco em Cannes é sinal estonteante dos tempos, uma colonização de mentes por uma linguagem cinematográfica primitiva bombeada por anfetaminas made in Hollywood e cuja eficácia inconsciente, sob seu exterior mágico- simplista, é clara para todos.

Então, de volta à analise do filme em si. Com feroz intensidade, a diretora Fargeat recorre a dispositivos baseados em fontes bem conhecidas, especialmente para cinéfilos mais atentos/antenados e de razoável quilometragem de movie road. Desde o posicionamento de câmera, os enquadramentos simétricos, as perspectivas profundas, o uso de lentes panorâmicas e até os tapetes ou o banho de sangue: tudo na encenação parece gritar na tela: “Kubrick, Kubrick” ! Há também vestígios de David Lynch na presença do duplo e na representação austera de Hollywood, que dialoga abertamente com “Mullholand Drive” (e com “O Homem Elefante”) E, claro, é inevitável não reconhecer David Cronenberg no prazer que a diretora demonstra ao retratar a corrupção dos corpos e sua obsessão em retirar deles tudo o que a natureza sabiamente colocou dentro, remember “A Mosca”. E no epílogo que reverencia a sequência apocalíptica de Brian De Palma em “Carrie”. Para bordar ainda mais a viagem: não esquecer do enfeitiçado “espelho meu, espelho meu” de outro clássico (infanto-senil ?), o lendário “Branca de Neve” com sua primitiva sede de imortalidade. Por trás desse reciclar de receitas antigas, “A Substância” se mostra a um só tempo perigosamente atraente.

Margareth Qualley, que interpreta o recém nascido alter ego, é fascinante no segmento amor-e-ódio. Prevalece a insolência da juventude, a supremacia da vaidade, a maneira de expressar o desprezo pela velhice. Vá por mim e assista: você tem que ver para acreditar.