Um livro que reúne cartas inéditas escritas por Clarice Lispector e a estreia do filme “A Paixão Segundo G.H.”, inspirado no primeiro romance assinado por ela, estão entre as novidades que marcarão a comemoração do centenário de nascimento da escritora nascida em 10 de dezembro de 1920. O pacote de lançamentos inclui ainda a reedição de 18 livros publicados pela ucraniana radicada no Brasil. As reedições trarão em suas capas ilustrações de telas pintadas pela autora em seus últimos anos de vida.

Previsto para chegar às livrarias no mês de julho pela editora Rocco, o livro “Todas as cartas” está sendo organizado por Teresa Montero, autora de “Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector”. Publicada em 1988, a biografia que ganhará edição ampliada neste ano revelou que Clarice mentia a idade e era cinco anos mais velha do que afirmava em determinadas publicações. A editora Rocco estima que o livro com muitas cartas inéditas de Clarice Lispector tenha cerca de 900 páginas. Dentre os textos inéditos, haverá alguns endereçados ao poeta pernambucano João Cabral de Mello Neto, que também completaria 100 anos em 2020.

Clarice Lispector: obra marcada por monólogo interior, cenas cotidianas e tramas psicológicas
Clarice Lispector: obra marcada por monólogo interior, cenas cotidianas e tramas psicológicas | Foto: Folhapress

Apontado como um dos títulos mais importantes da obra da escritora, “A Paixão Segundo G.H.”, lançado em 1964, ganhará uma versão cinematográfica. Caberá à atriz londrinense Maria Fernanda Cândido interpretar a personagem principal do drama vivido por uma moradora de Copacabana que ao matar uma barata acaba mergulhando em uma reflexão existencial, contemplando a perda de sua identidade.

Três dos 18 livros escritos por Clarice Lispector que a editora Rocco pretende lançar até o final do ano já chegaram ao mercado. Publicados originalmente nos anos 1940, “Perto do Coração Selvagem”, “O Lustre” e “A Cidade Sitiada” ganharam posfácios assinados por Nádia Battella Gottlib, a primeira biógrafa de Clarice; Parul Sehgal, crítica literária do jornal “The New York Times”; e Benjamin Moser, o biógrafo americano.

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As obras de Clarice Lispector atravessam décadas, desde a primeira edição de A Paixão Segundo G.H., lançado em 1964, até republicações recentes de romances como  O Lustre e Perto do Coração Selvagem, pela editora Rocco
As obras de Clarice Lispector atravessam décadas, desde a primeira edição de A Paixão Segundo G.H., lançado em 1964, até republicações recentes de romances como O Lustre e Perto do Coração Selvagem, pela editora Rocco | Foto: Reprodução

Pioneira no conceito da epifania

Nascida na Ucrânia, Clarice Lispector se naturalizou brasileira e escreveu romances, contos e ensaios antes de morrer vítima de câncer de ovário um dia antes de completar 57 anos. A obra da escritora é marcada por cenas cotidianas simples e tramas psicológicas. “São marcas fundamentais a introspecção, recurso para o leitor conhecer a personagem “por dentro”, como se habitasse seus pensamentos; a recorrência do monólogo interior e do fluxo de consciência, fundamentais para a composição das personagens; a análise psicológica a partir de situações ou acontecimentos banais; e a construção de uma galeria de personagens femininas que vão de G.H., artista classe média alta, a Macabéa, migrante nordestina desajustada na grande metrópole”, destaca Sonia Pascolati, professora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Londrina com doutorado em Estudos Literários.

A docente ressalta a importância da autora famosa para a literatura brasileira. “Por ter produzido uma literatura ímpar, Clarice Lispector é uma das escritoras mais relevantes do século XX. Sua obra levou críticos renomados como Affonso Romano de Sant’Anna, Massaud Moisés e Benedito Nunes a proporem o conceito de epifania, espécie de súbita revelação existencial pela qual passam suas personagens”, enfatiza.

Sônia chama a atenção ainda para o fato de os textos de Clarice levarem a linguagem literária a desdobrar-se sobre si mesma e a atemporalidade de sua obra. “Nossa tradição de crítica literária e de ensino de literatura tendem à classificação de autores e obras em escolas literárias, porém, há (muitos) talentos que ultrapassam essas categorizações. Importa menos classificar do que mergulhar no universo ficcional de Clarice, exatamente porque sua literatura é capaz de falar do humano, em sua universalidade e atemporalidade”.

Além de romances memoráveis escritos pela autora, a docente lembra que Clarice possui contos que podem ser incorporados dentre a mais alta expressão literária em língua portuguesa. “Destacar exemplares da contística clariceana é sempre um processo atravessado pelo gosto pessoal, mas acho possível apontar o conto “Amor”, publicado em Laços de Família (1960), como um de seus melhores. Ana, a protagonista, esposa, dona de casa e mãe dedicada, passa por um processo de epifania quando se depara com um cego mascando chiclete, bela metáfora do cotidiano banal que abala os alicerces da personagem e marca seu momento de epifania. No mesmo livro, está “Feliz Aniversário”, conto que pela temática da velhice e dos conflitos familiares mal camuflados, se aproxima de “O grande passeio”, este último parte da coletânea "Felicidade Clandestina, de 1971”, conclui.

A londrinense Maria Fernanda Cândido interpreta personagem de A Paixão Segundo G.H. em filme que será lançado este ano
A londrinense Maria Fernanda Cândido interpreta personagem de A Paixão Segundo G.H. em filme que será lançado este ano | Foto: Lucas Seixas/ Folhapress

Assista a última entrevista de Clarice Lispector