“Pobres Criaturas/Poor Things”, o novo filme visualmente suntuoso e efusivamente inteligente do grego Yorgos Lanthimos, em exibição em Londrina, é versão fantasmagórica da clássica história de Frankenstein, decorada com um riso frequentemente amargo. A trama acompanha as aventuras de Bella (Emma Stone), uma estranha mulher vitoriana com temperamento infantil que tem uma história bizarra, hábitos peculiares, um ambiente surreal e um guardião atencioso, embora incomum, o Dr. Baxter.

Ele é cientista renomado e extravagantemente pouco ortodoxo, cujo gosto por cortar e fatiar os vivos e os mortos o faz parecer mais um açougueiro fashion. Junto com Bella, uma empregada doméstica e um zoológico de seus repulsivos experimentos com animais à maneira do dr. Moreau de H.G. Wells, ele vive em uma mansão londrina opulentamente decorada e cheia de curiosidades. Em seu laboratório ele disseca cadáveres para ler seus segredos, e uma atrapalhada e tonta Bella às vezes se junta à diversão. Quando um visitante aparece, Baxter admite que Bella também é um experimento, e logo surge a verdade: depois de encontrar seu cadáver (trata-se de uma suicida), ele a reanimou trocando seu cérebro pelo de um feto.

Certamente Bella parece adulta de ponta a ponta, com uma cortina de cabelo escuro que cai em cascata pelas costas. No entanto, há uma desconexão óbvia e perturbadora entre corpo e cérebro. Às vezes, sua sintaxe e oscilação trazem à mente uma criança pequena – Stone dá à Bella a instabilidade espasmódica de uma criança – embora em momentos ela também sugira uma boneca animatrônica danificada. Bella é bagunceira, curiosa, indelicada, violenta. Bella, o espectador logo percebe, é uma experiência em andamento. Ela é monstruosa. Ela também é uma mulher. Mas ainda não sabe.

O aguardado retorno do oscarizado Yorgos Lanthimos, com este excêntrico “Pobres Criaturas” é uma das surpresas mais fascinantes do ano. Não é fácil descrever esta proposta que já vem colecionando prêmios desde o Leão de Ouro em Veneza, mas um rótulo híbrido , algo como comédia gótica-sexual-iniciática, oferece uma aproximação gratificante daquilo que o espectador pode esperar do filme. O sétimo longa de Lanthimos não somente é seu segundo trabalho de época depois de “A Favorita”, mas também é o segundo escrito por Tony McNamara, em vez de pelo próprio diretor. Neste caso, o roteiro é uma adaptação da novela homônima de 1992 do escritor escocês Alasdair Gray, na qual Lanthimos deu vida com um elenco de enorme capacidade.

Embora existam ecos óbvios do clássico de Mary Shelley, o filme é dedicado à criação de uma mulher, ou à forma como uma mulher se cria. Lanthimos permanece fiel ao ponto de vista desta mulher, Bella, tanto no conteúdo quanto na forma. À medida que a fala e os movimentos dela se tornam mais fluidos e naturais, o mundo que testemunhamos expande-se, tornando-se cada vez mais incandescente passando do preto e branco monocromático inicial às cores supersaturadas. Assim que decide fugir com o famoso sedutor Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), presenciamos paisagens urbanas hipnotizantes (Lisboa, Alexandria e Paris), cuja aparência estilizada reforça o fascínio de Bella.

Bella (Emma Stone) em "Pobres Criaturas": o diretor  grego Yorgos Lanthimos revela mais uma vez seu amor pela estética extravagante
Bella (Emma Stone) em "Pobres Criaturas": o diretor grego Yorgos Lanthimos revela mais uma vez seu amor pela estética extravagante | Foto: Divulgação

CINEMA ATRAVÉS DO CORPO

Tony McNamara transferiu o cenário original de uma Glasgow vitoriana politicamente relevante para uma Londres extravagante. E ao fazê-lo a alegoria política se dissipa para dar lugar ao significado literal, exemplificado pela maneira corpórea de Bella estar no mundo. Se Lanthimos foi atraído pela ideia da mente como tábula rasa (a a pessoa desprovida de saber), o seu cinema a representa através do corpo. A estreita colaboração com Emma Stone, que também atua como produtora, permitiu uma construção gradativa da personagem, com resultados eletrizantes. Stone é uma atriz versátil, que se destaca por atuações que implementam cada etapa do processo de socialização de sua personagem na postura, no modo de andar e de falar. A autonomia de Bella está diretamente ligada à sua sexualidade, e essa descoberta, representada nas múltiplas e impressionantes cenas de sexo, também se reflete em seu corpo e em seus movimentos.

As “Pobres Criaturas” estão perfeitamente conscientes de caminhar graciosas, mas impassivelmente, sobre o gelo mais fino. Lanthimos tem que agir como um bailarino exímio, executando a coreografia para que sua proposta tenha o exato ponto de truculência sem se tornar desagradável, maravilhando o espectador com suas danças para que não se concentre só na complexa e sinuosa moral da história. Poderia ter sido um desastre, mas nas mãos do criador de “Canino” , “A Lagosta” e “O Sacrificio do Cervo” torna-se prazer mais absoluto. Para transformar a miséria em diversão, Lanthimos traça uma evolução fascinante de personagens, especialmente no caso de Bella, que, incapaz de se comunicar com palavras, usa seu corpo e sua sexualidade como uma forma inefável de expressão e empoderamento. O que para ela é uma forma de aprender e compreender pela primeira vez o que a rodeia, para Duncan Wedderburn (Ruffalo), o canalha apaixonado pelo poder e controle sexual sobre uma rapariga aparentemente inocente, é uma forma de se aproveitar dela sem qualquer consideração.

FRANKENSTEIN MODERNO

Os paralelos contínuos entre “Pobres Criaturas” e a sociedade atual são abundantes, e sair dessa fábula erótica com sucesso é um sucesso para o autor, que apresenta Bella como um Frankenstein moderno que encapsula a verdadeira questão que o filme quer fazer em relação ao mito : é mais monstro o ser criado artificalmedne ou aquele que quer se aproveitar de sua inocência? Bella, a princípio, mal sabe falar, se mover adequadamente ou fazer qualquer outra coisa além de usar seu corpo para fins sexuais. Quando cresce e evolui, o verdadeiro monstro, derrotado, vem à tona de forma degradante, como um lenço usado cheio de lágrimas para a alegria de um público que aprendeu a odiá-lo.

Há controvérsias sobre se este é o filme mais “acessível” de Yorgos Lanthimos, e isso realmente depende do que você entende como tal (pessoalmente eu colocaria esse adjetivo, sem dúvida, para “A Favorita”). É verdade que se despoja das impossíveis estranhezas narrativas de “Canino” e “A Lagosta” , mas isso não significa que a sua temática seja fácil de enquadrar, se o roteiro agradará a todos, ou a sua encenação gótica – a começar por uma trilha sonora tão fascinante quanto indescritível – seja gentil. Ou isso lhe agrada profundamente ou você vai querer sair da sala depois de dez minutos: não haverá mais meio-termo.

“Pobres Criaturas” pode ser às vezes desagradável, sim. Necessariamente desagradável, eu diria. No final das contas, pretende ser um distanciamento do cinema que se faz atualmente, até mesmo do industrial ou do underground ou do independente. Não há uma única cena nesta fábula cheia de reviravoltas e becos sem saída que não tenha pelo menos um elemento visual inesperado, medido milimetricamenete, desde o rosto daquele Willem Dafoe deformado (costurado por um alfaiate míope...) , até um final delicioso que fecha a obra em grande estilo. A princípio pode não ser um prato saboroso – afinal, nunca lhe serviram nada parecido – mas se você experimentar, pode querer repetir.

O filme não deixa de desafiar e ser um alucinante delírio técnico e artístico.

E revela o amor de Lanthimos pelos close-ups e pela estética extravagante, revelando uma nova faceta de sua abordagem narrativa/imaginativa. O grego fez o que parece ser o seu filme mais terno e esperançoso até o presente. Não poderia ter escolhido filme melhor para se despojar das toneladas de suas alegorias políticas: os desafios corporais no cerne de “Pobres Criaturas” são resolvidos com entusiasmo, empatia e muito humor cáustico. É impossível preparar-se para o rico espetáculo de vitalidade bizarra que ele oferece. Apesar da promessa do título.

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