O caçador das cidades perdidas...
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quarta-feira, 09 de outubro de 2002
Célia Musilli<br> Reportagem Local
Barra do Garças A história mágica que ainda hoje guia os místicos do Roncador tem origem no começo do século 20 através do coronel inglês Percy Harrison Fawcett, um caçador de cidades perdidas. Instigado pelo mistério de uma estranha estatueta de basalto que ganhou do escritor H. Rider Haggard autor de ''As Minas do Rei Salomão'' Fawcett veio a América do Sul como topógrafo, mas disposto a viver sua saga de Indiana Jones. Dizem que ele inspirou o personagem do filme de Steven Spielberg.
Fawcett acreditava que a estatueta continha o mapa do misterioso ponto Z, no interior do Brasil, onde ficaria o acesso a uma cidade encoberta. Mas em seu diário de viagem, o coronel também faz alusões a riquezas minerais, de onde se conclui que o seu misticismo continha grande dose de interesse pelo ouro brasileiro.
Quando o presidente Epitácio Pessoa solicitou a ajuda do Marechal Cândido Rondon para que acompanhasse Fawcett nas suas andanças pelo sertão, Rondon prudentemente recusou porque desconfiava das intenções do inglês. Mesmo com a recusa, Fawcett que tinha trabalhado como agente secreto do serviço britânico na Índia conseguiu apoio de Pessoa e, mais tarde, do também presidente da República Arthur Bernardes para tentar chegar à sua terra prometida. Antes, ele andou pelos Andes e pela Amazônia Boliviana onde fez demarcações de fronteiras em expedições que vão de 1906 a 1913. Em 1914, saindo de San Inácio, na Bolívia, entrou no território brasileiro, onde, segundo seus relatos, viveu experiências místicas num funeral indígena no antigo Guaporé, hoje estado de Rondônia.
Animado pela descoberta de Machhu-Picchu, por Hiran Birgham, em 1911, o coronel inglês reforçava a cada experiência a certeza de que encontraria remanescentes da antiga Atlântida escondidos no interior do Brasil. Ou, no mínimo, estava convencido que encontraria aqui vestígios de uma cidade mais importante do que o mítico reduto dos incas, no Peru.
Acompanhado pelo filho Jack e de outro jovem chamado Raleigh, Fawcett se embrenhou no sertão onde mais tarde desapareceu misteriosamente, dando origem à lenda de que teria encontrado o portal metafísico de acesso ao Templo de Ibez. A partir disso, o coronel passaria a viver sua saga na quarta dimensão, definida pelos místicos como uma realidade paralela. De concreto, tudo o que se sabe está num último bilhete que chegou ao conhecimento da sua família através de peões que desistiram de acompanhar a empreitada dos estrangeiros. No texto, Fawcett descreve a exata localização em que se encontrava: a 11 graus e 43 minutos de latitude sul e 54 graus e 35 minutos de longitude oeste. Também aproveita para dizer à sua mulher Nina que ''não receasse fracasso algum''.
Ao que parece, nada deu certo depois daquele longínquo 29 de maio de 1925, quando Fawcett escreveu o comunicado. A partir desta data, ele não deu mais notícias. Nascia assim uma das maiores lendas do século 20. Nas décadas seguintes, inúmeras expedições tentaram inutilmente encontrar Fawcett e seus companheiros nas selvas brasileiras. O jornal londrino The Times oferece, ainda hoje, uma recompensa milionária para quem conseguir informações seguras sobre o seu destino.
...foi morto pelos índios kalapalos
Mais de 25 anos depois do misterioso desaparecimento do coronel Fawcett, o sertanista brasileiro Orlando Villas-Boas um dos líderes, a partir de 1943, da Expedição Roncador-Xingu junto com os irmãos Claúdio e Leonardo seria protagonista de um fato desmistificador. Em 1952, vivendo no Parque Nacional do Xingu, Villas-Boas soube pelos índios kalapalos que os ossos de Fawcett estavam enterrados em seu território. Neste ponto, a história ganha uma versão bem mais realista.
Segundo os índios, quando Fawcett conviveu com a tribo, por duas vezes infringiu a regra de respeito às crianças. Primeiro, agrediu um menino que teria pegado uma faca de estimação. O inglês severo confundiu a curiosidade infantil com uma tentativa de roubo e bateu na criança. Numa outra vez, Fawcett abateu um pato a tiros durante o vôo e outro garoto foi duramente repreendido porque apanhou a ave numa atitude de solidariedade também incompreendida. Os índios, que não costumam castigar as crianças fisicamente, repudiaram o autoritarismo do coronel, mataram o hóspede a bordunadas e enterraram a ''lenda'' no Xingu.
Orlando Villas-Boas levou os ossos para exames. Primeiro, chamou ao Brasil um filho de Fawcett, Ryan, para que ajudasse no reconhecimento dos restos mortais. Na época, grandes legistas brasileiros identificaram sinais de que os ossos eram mesmo do coronel: uma cicatriz no crânio e a arcada dentária atestavam sua identidade. Mas Ryan preferiu voltar a Inglaterra sem desmanchar a versão mistificadora. À tentativa de investigação, respondeu simplesmente que ''não trocaria a lenda do pai por um punhado de ossos''. Mais tarde, com a ajuda de Assis Chateaubriand, a ossada foi enviada a Inglaterra, num outro esforço de identificação que acabou em nada.
Na última sexta-feira, a Folha tentou entrevistar Orlando Villas-Boas, por telefone, para saber em que ponto estão as investigações, 50 anos depois do sertanista ter encontrado o esqueleto do coronel. Orlando estava hospitalizado para um tratamento da tiróide e sua mulher Marina enfermeira que trabalhou no Xingu de 1963 a 1972 informou que a ossada se encontra no Instituto Médico Legal de São Paulo para exames de DNA.
O legista Daniel Munhoz, a pedido de Villas Boas, investiga há 15 anos os restos mortais de Fawcett em busca de uma resposta conclusiva. Por enquanto, Marina apenas dá graças a Deus pelo fato dos ossos terem saído de seu apartamento onde já estiveram guardados. ''Eu só pedi a Orlando que não deixasse aquela coisa aqui'', disse sincera e bem-humorada.
Leia mais sobre o assunto no livro ''Coronel Fawcett A verdadeira história do Indiana Jones'', de Hermes Leal, Geração Editorial, 312 páginas.