Imagine um pequeno vilarejo do interior do Brasil que, de maneira inesperada, é invadida por homens que não dizem nada. Na sequência, a pequena cidade é ocupada por cães que igualmente nada dizem. Em seguida o lugar é dominado por bois e vacas que nada pronunciam.

Homens, cães e gado apenas aparecem no lugar sem nenhuma razão. Instalam-se para alterar a realidade imediata, sem nenhuma lógica evidente. Apenas estão ali, utilizando um poder invisível para intimidar os habitantes do vilarejo.

Esta é a atmosfera de “A Hora dos Ruminantes”, romance do escritor goiano José J. Veiga (1915 – 1999) que acaba de ser relançado pela editora Companhia das Letras dando continuidade na republicação das obras completas do autor. Publicado originalmente em 1966, a obra se tornou referência do realismo fantástico brasileira.

Imagem ilustrativa da imagem O absurdo da realidade na literatura de José J. Veiga
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José J. Veiga (1915 – 1999) é considerado um dos pilares do realismo fantástico (ou realismo mágico) brasileiro ao lado de autores como Murilo Rubião (1916 – 1991) e Campos de Carvalho (1916 – 1998), mesmo tendo recusado tal classificação: “Minha literatura é uma literatura realista, nem fantástica, nem mágica”.

Em “A Hora dos Ruminantes” uma legião de homens desconhecidos monta acampamento em um pasto ao próximo ao pequeno vilarejo de Manarairema. De organização militar, fazem o que ninguém sabe e constroem coisas que ninguém sabe o que é. A instalação da legião altera toda a rotina da pequena cidade numa sucessão de atos e acontecimentos desprovidos de sentido. A vida dos habitantes entra num grande e nebuloso mar de dúvidas e questões nunca respondidas.

Além dos homens que se instalam na cidade, uma matilha de cachorros desconhecidos invade o lugar ocupando ruas, calçadas, praças e quintais. Na sequência, um rebanho de gado igualmente desconhecido invade o vilarejo ocupando todos os espaços disponíveis e indisponíveis. Sem saber como agir, sem demonstrar nenhuma reação, os habitantes de Manarairema passam a viver como reféns dentro de suas próprias casas. A situação segue crescendo até a população perder a noção daquilo que suas vidas se tornaram.

O autor realiza uma alegoria do poder invisível, do poder discreto, do poder em segredo que começa de maneira despercebida e lentamente ganha força, peso e violência. Um poder que não se pode compreender de maneira imediata, mas que promove o autoritarismo em pequenas doses, lentamente e sem forma aparentemente definida. Um autoritarismo e uma violência que, quando se torna visível, não pode mais ser controlada e acaba ganhando proporções insanas.

Na obra é visível a influência da literatura do escritor tcheco Franz Kafka (1883 – 1924). Veiga nunca negou tal influência, declarava que quando entrou em contato com os textos de Kafka, algo aconteceu: “Uma descoberta que acarretou um abalo em minhas concepções. Tive que rearrumar tudo para abrir espaço para ele, e um espaço amplo.”

“A Hora dos Ruminantes” possui uma atmosfera semelhante ao romance “O Castelo”, obra de Kafka de 1922. Uma atmosfera transportada para o interior do Brasil agrário da década de 1960. José J. Veiga promove a aproximação entre o real e o estranho. Se próxima do absurdo, do extravagante, do bizarro, do disparate e da estranheza para evidenciar a realidade. Transforma o absurdo em prosaico.

José Jacinto Veiga nasceu na pequena cidade de Corumbá de Goiás em 1915. Com 18 anos de idade se mudou para o Rio de Janeiro para cursar a Faculdade Nacional de Direito. No final da década de 1940 residiu em Londres onde trabalhou na BBC. Ao retornar ao Brasil, foi editor-chefe da revista “Seleções”, versão brasileira da “Reader’s Digest”. Publicou seu primeiro livro, “Os Cavalinhos de Platiplanto”, em 1959. Recebeu o Prêmio Jabuti em três ocasiões: em 1981 com o volume de novelas “De Jogos e Festas”, em 1983 com o romance “Aquele Mundo de Vasabarros”, em 1993 com o romance “O Risonho Cavalo do Príncipe”. Ao faleceu em 1999, deixou duas dezenas títulos diferenciados na literatura brasileira do século 20.

José J. Veiga: " “Minha literatura é uma literatura realista, nem fantástica, nem mágica”
José J. Veiga: " “Minha literatura é uma literatura realista, nem fantástica, nem mágica” | Foto: Divulgação

Serviço:

“A Hora dos Ruminantes”

Autor – José J. Veiga

Editora – Companhia das Letras

Paginas – 152

Quanto – R$ 49,90 (papel) e R$ 27,90 (e-book)