Rimar poesia com rebeldia parece ser o caminho literário do poeta e jornalista Ademir Assunção. Seu novo livro, “Risca Faca”, que acaba de ser lançado pela editora Demônio Negro, reforça uma trajetória em que a insatisfação é convertida em poderoso combustível para as palavras.

Vencedor do Prêmio Jabuti de Poesia de 2013 com o livro “A Voz do Ventríloquo”, Ademir Assunção procura equilibrar em seus versos rebeldia e suavidade, insatisfação e sabedoria. Uma procura que permeia seus 15 títulos publicados.

Até o final do ano ele deverá lançar mais dois títulos: “Deus Salve a Rainha e Evite Engarrafamentos”, que sai pela Editora da Universidade de Brasília, reúne textos de jornalismo cultural (reportagens, perfis, resenhas e artigos) publicados ao longo de sua carreira jornalística em revistas e jornais do país, inclusive na Folha de Londrina; e “Um Nome Escrito no Vento”, um longo poema “fantasiosamente autobiográfico”, que sai pela editora Grafatório de Londrina.

A seguir, Ademir Assunção fala sobre seu novo livro, “Risca Faca”.

Ademir Assunção: "Continuo acreditando que as artes têm um papel importante no debate público, desde que consigam maior repercussão – e não se convertam apenas em novos produtos lançados no grande mercado"
Ademir Assunção: "Continuo acreditando que as artes têm um papel importante no debate público, desde que consigam maior repercussão – e não se convertam apenas em novos produtos lançados no grande mercado" | Foto: Divulgação

Em “Risca Faca”, como em seus livros anteriores, há uma poética dedicada ao ritmo das palavras, dedicada à musicalidade dos versos. Seu interesse está em criar uma poesia musical?

Não diria que meu interesse está em criar uma poesia musical, mas, sem dúvida, a esta altura da minha vida e do meu trabalho com a poesia, não é improvável notar que a melopeia, a musicalidade, está muito impregnada em meus versos. Em primeira instância, acredito que seja algo incrustado no meu aparelho mental: a poesia surgiu para mim, ainda muito novo, lá pelos sete anos de idade, não através dos livros, mas das canções que eu ouvia no rádio. Sempre afirmo e reafirmo o espanto que me causava quando ouvia Caetano Veloso cantando “eu vou, em caras de presidentes / em grandes beijos de amor / em dentes pernas bandeiras / bomba e brigitte bardot”. Ou Cartola: “queixo-me às rosas / mas que bobagem / as rosas não falam / simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti.” Essas palavras eram articuladas de uma maneira que eu não ouvia no cotidiano. Causavam uma inexplicável alegria e curiosidade naquele menino de sete anos de idade. Posteriormente, dois livros me ajudaram muito a entender e prestar atenção máxima na musicalidade das palavras: “ABC da Literatura”, de Erza Pound, que me foi emprestado pelo saudoso amigo e artista visual Bira Senatore, que nos deixou recentemente, e “Verso Reverso Controverso”, de Augusto de Campos, especialmente nos poemas provençais de Arnaut Daniel, Guilhem de Peitieu, Bernart de Ventadorn e Marcabru. Porém, caberia ressaltar que não somente a musicalidade, mas também o cuidado na construção de imagens projetadas na mente do leitor e vários outros aspectos da linguagem mobilizam minha atenção na composição dos poemas.

Os versos de “Risca Faca” trafegam entre uma fúria rebelde contra o mundo e, ao mesmo tempo, uma tranquilidade em olhar o mundo. Como conciliar estes dois movimentos na poesia?

Este é um dos aspectos que tento equilibrar não apenas na minha poesia, mas em todo o meu trabalho e na minha própria vida: uma equação entre a rebeldia e a sabedoria. Por que rebeldia? Porque não me é possível olhar com indiferença as absurdas desigualdades, injustiças e aberrações com que nos deparamos todos os dias. Sabedoria para tentar enxergar mais além essa grande aventura que é nossa passagem por este planeta. Uma passagem finita, todos sabem. Parafraseando a poeta Natália Barros, não tenho certeza se haverá vida após a morte: eu acredito em vida antes da morte.

Na seção “Fábulas Contemporâneas”, você faz uma crítica ferina sobre a realidade brasileira utilizando a própria linguagem da realidade. E ao expor essa linguagem, expõe a crueldade e o absurdo da realidade. A realidade brasileira se tornou tão absurda, e tão cruel, como você apresenta?

A realidade brasileira revela evidências diárias de ser muito mais absurda e cruel do que consegui elaborar nas “Fábulas Contemporâneas”. Até mesmo setores da esquerda mais humanista argumentam, por exemplo, que é preciso diminuir a distância entre muito pobres e muito ricos. Para mim, só a existência de muito pobres e muito ricos convivendo, aos trancos e barrancos, lado a lado, é de uma crueldade sem tamanho. De um lado, pessoas que podem comprar camas de R$ 40 mil, de outro, pessoas que não tem sequer um teto para se abrigar. Que tipo de monstruosidade social é esta? Mas há críticas também, neste conjunto de poemas, ao esvaziamento da linguagem nos meios de comunicação, especialmente televisão e rádio, incluindo os jornais também; aos vigaristas ou vendilhões do templo, que exploram acintosamente a fé alheia; aos pilantras da economia neoliberal; ao racismo secular. Em alguns deles, acredito que as críticas, às vezes com muito humor, vão além da realidade brasileira; se estendem à realidade mundial, como em “Fábula da Civilização”. Como você bem formulou na sua pergunta, utilizo a linguagem da própria realidade para colocá-la a nu. Mais ou menos como Frank Zappa disse em uma entrevista: utilizo as armas de uma sociedade doente e desorientada contra ela mesma.

Os poemas de “Risca Faca” estão marcados por uma narrativa de insatisfação, por uma força de conflito, por uma posição de resistência frente às contradições do mundo contemporâneo. Você considera que, nos tempos atuais, a poesia pode assumir a forma de um enfrentamento estético diante de uma barbárie em plena época de sofisticação tecnológica do mundo civilizado?

Grande parte da poesia mundial sempre tematizou as crueldades de suas sociedades. Jamais perco de vista uma rima pobre, mas muito verdadeira: poesia / rebeldia. Quer dizer: poesia rima com rebeldia. E rebeldia é uma qualidade dos humanistas que não se conformam. Lembro agora de um verso de Mário Quintana: “um poeta satisfeito não satisfaz”. Enquanto houver motivos de insatisfação certamente ela estará presente não apenas na arte da poesia, mas em todas as artes. Tenho pensado muito se outras épocas foram melhores que a nossa. Parece que não. A história do mundo é de guerras, massacres, torturas, conflitos hediondos. Mas, por outro lado, há astrofísicos fazendo descobertas fantásticas sobre o espaço sideral, mestres zen e sábios indígenas tentando nos mostrar a necessidade de uma compreensão maior a respeito da impermanência da vida, neurocientistas mostrando aspectos maravilhosos do funcionamento do cérebro humano. Como é possível que, com tanto acúmulo de conhecimentos e experiências, com tanto avanço tecnológico, continuemos a viver quase que exclusivamente em função do dinheiro, da exploração dos nossos semelhantes, da fama a qualquer custo, e espalhando miséria, destruição e desesperança?

É possível vislumbrar alguma esperança no final do túnel? A poesia, além de rebeldia, pode “rimar” com esperança?

Rima dificílima, mas, quem sabe? No caso do Brasil, não tenho dúvidas. Bolsonaro, e essa mistura de corrupção, incompetência e baixo astral que ele representa, vai passar. Não tem como esse desgoverno se sustentar por muito tempo, a não ser pela força. Mas, para mim, ele não é a doença, é o sintoma da doença muito maior e que está enraizada na sociedade brasileira: uma mistura de ódio, estupidez e feridas nunca cicatrizadas. É essa doença que o levou ao posto onde ele está. Todos sabiam o que ele era e o que pensava, ou não pensava, melhor dizendo. A sociedade permitiu que o baixo-nível se instalasse. Há interesses econômicos fortíssimos trabalhando incessantemente para evitar mudanças estruturais na sociedade. Os meios de comunicação, que teriam um papel fundamental na elevação do nível do debate público, não estão fazendo isso. Em sua maioria, falsificam, manipulam, iludem, em maior ou menor grau, dependendo das conveniências. Neste contexto de descrença generalizada, continuo acreditando que as artes em geral têm um papel importante no debate público, desde que consigam maior repercussão – e não se convertam apenas em novos produtos lançados no grande mercado. Por quê? Porque a arte tem o poder de abrir os olhos, ressignificar aquilo que se esvaziou, tocar mais fundo no humano. A sobrevivência da espécie, mais do que em qualquer outra época, depende de uma mudança radical – e urgente – do que significa nossa passagem por este planeta. A pergunta que precisa ser respondida com urgência é: estamos aqui para acumular riquezas na mão de poucos ou para acumular conhecimento para todos?

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. | Foto: Reprodução

Serviço:

“Risca Faca”

Autor – Ademir Assunção

Editora – Demônio Negro

Prefácio – Claudia Roquette-Pinto

Páginas – 132 (capa dura)

Quanto – R$ 35