Uma nova safra de filmes de terror disponível por streaming é o antídoto perfeito para a má qualidade usual do gênero disponível nos cinemas e aos espectros de todo tipo invocados pelas campanhas a presidente deste ano.
Liderado por "Apóstolo" (2018), o lote em cartaz na Netflix traz produtos de qualidade díspar que atendem tanto a quem busca algo mais cerebral quanto aos que garimpam exotismos para satisfazer aquele prazer culpado que acomete todo fã do terror de tempos em tempos.
Dirigido pelo galês Gareth Evans, "Apóstolo" traz uma releitura radical da premissa do melhor filme sobre cultos já feito, o britânico "O Homem de Palha", de 1973.

Como no clássico protagonizado por Christopher Lee, um homem chega a uma ilhota britânica meio remota atrás de uma mulher desaparecida e dá de cara com uma comunidade que abandonou a moralidade convencional.
Os detalhes e motivações na trama são bastante diferentes, contudo, e Evans perverte brilhantemente o conceito de jornada do herói presente nas duas produções.
No filme atual, passado em 1905, as explicações são parcas. Sabe-se que os aldeões, gente desesperada para fugir do continente por vários motivos, adoram o que chamam de deusa da ilha. O lugar é sujo, pobre e famélico, e a explicação científica para safras fracassadas do filme de 1973 é substituída por um insondável motivo sobrenatural.
Mediando os locais com a deusa está o profeta Malcolm, vivido brilhantemente por Michael Sheen. A loucura aparente e a violência do personagem são temperadas por momentos de compaixão que fazem o espectador duvidar sobre quem é o vilão da história.
O filme, com uma trilha sonora que comanda cenas inteiras, traz papéis que se invertem o tempo todo. "Apóstolo" se transmuta de terror psicológico de época a estranho thriller sobrenatural por meio de um banho de sangue cada vez mais cruel.


"Noite de Lobos": série atrai menos pelo roteiro e mais pelas paisagens sombrias do Alasca
"Noite de Lobos": série atrai menos pelo roteiro e mais pelas paisagens sombrias do Alasca | Foto: Divulgação



O apuro visual da obra encontra par em outro lançamento recente, "Noite de Lobos" (2018). Aqui, o cultuado americano Jeremy Saulnier (diretor de "A Sala Verde") apresenta uma espécie de "tour-de-force" tendo com o tema o que parece ser um caso de licantropia no Alasca.
O roteiro esfarela em inconsistências, girando em torno de um escritor especializado em lobos que atende ao chamado de uma misteriosa mulher cujo filho foi levado para a floresta pelas feras, em uma vila nos confins do estado.
O que se impõe é a fotografia, mesmerizadora, das paisagens do Alasca. É suficiente para manter o interesse no roteiro meio capenga até o final, quando a ausência de um desfecho de fácil compreensão ajuda a manter a ilusão de que talvez estejamos diante de uma obra instigante de fato.


MISTÉRIOS - Para o pleno exercício do direito à vergonha, porém, a pedida é "Errementari: O Ferreiro e o Diabo" (2017). É uma daquelas belezas que o streaming trouxe: a possibilidade de ver um filme de terror basco sobre uma lenda basca falado em... basco.
A intrincada língua da região espanhola mais famosa por seu atávico separatismo dá um charme diabólico aos diálogos. Literalmente, pois um dos protagonistas é Sartael, demônio que foi aprisionado numa gaiola ao tentar coletar a alma de um soldado que lhe deve favores durante uma das guerras civis espanholas do século 19.

O diretor, Paul Urkijo Alijo, bebe do alambique aberto por Guillermo del Toro em sua fase espanhola. Onde o hoje celebrado diretor hollywoodiano usava o trauma do franquismo como subtexto de histórias fantásticas ("A Espinha do Diabo", "O Labirinto do Fauno"), Alijo saca raízes históricas do independentismo de sua terra. Funciona bem.
Conflitos de poder central e província ficam claros quando um estranho oficial do governo tenta descobrir o paradeiro do soldado, agora o ferreiro Patxi do subtítulo, que vive numa ferraria que mais parece uma gravura de Gustav Doré sobre o "Inferno" de Dante.
A história é guiada pela mão de uma menina, que faz a ligação entre os vários personagens de forma engenhosa, embora o nível das atuações seja sofrível - exceção talvez a Eneko Sagardoy, o ator que claramente se diverte no papel de Sartael, vermelho, chifrudo e com tridente na mão.
Fazendo jus à sua proposta, de forma voluntária ou não, o 'grand finale' literalmente às portas da casa do capeta é tão constrangedor que arranca risadas. Desde a invenção do homus, nunca se viu tanta utilidade num simples punhado de grãos-de-bico.