Pouco conhecido, mas considerado talento essencial por muitos críticos musicais, o compositor tcheco Josef Myslivecek é o tema de “Il Boemo”, bela cinebiografia de época que entra em exibição no Ouro Verde a partir de segunda-feira (30). O filme estreou há um ano no Festival de San Sebastián, e há um mês no Brasil. Escrito e dirigido por Petr Vaclav, é um melodrama dinâmico, divertido (mas também sofrido) e surpreendente sobre a música de Myslivecek e seu estilo de vida hedonista, vale dizer, sobre os costumes de tempos de brilho veneziano. Embora o filme seja majoritariamente em italiano, ele foi a entrada checa na corrida internacional do Oscar de 2022. O ator e músico tcheco Vojtech Dyk apresenta uma atuação arrojada como o músico que se tornou um compositor célebre na Itália do século XVIII e foi praticamente esquecido por uma história que celebrou bem mais o jovem Mozart. Mas não há dúvida do talento do homem apelidado de Il Boemo, como atestam as diversas sequências musicais do filme.

O primeiro contato visual do espectador com Myslivecek é quando ele está morrendo de sífilis, com o rosto desfigurado sob por uma máscara veneziana. A ação retrocede três décadas para um território mais agradável, quando ele inicia uma série de casos amorosos com mulheres italianas, a maioria delas com influência e riqueza consideráveis. A sinopse descreve Veneza como a capital europeia do prazer, e há entretenimento nas explorações sexuais de Myslivecek. Sem mencionar uma cena extraordinária em que o rei Fernando IV defeca em uma panela (que causou enorme reação em San Sebastián). Mas, apesar dos seus momentos sexuais e escatológicos, este não é outro “Amadeus”: tem um tom menos turbulento do que a cinebiografia lúdica de Milos Forman de 1984 e parece mais comprometido com a precisão histórica.

Inicialmente, “Il Boemo” dá bastante arbítrio às suas personagens femininas, e é revigorante ver a história de um jovem sem dinheiro que recebe oportunidades de mulheres ricas, e não o contrário. Algumas cenas abordam preocupações feministas contemporâneas, como aquela em que uma soprano famosa reclama de se tornar objeto por sua voz e aparência, e não por sua inteligência. Pena que a idéia é prejudicada quando Myslivecek dá um tapa na artista para levá-la ao palco e depois acaba em sua cama. Quando parece que o roteiro pode interrogar seu comportamento, o tom muda para um território cômico, o que parece desconfortável e em desacordo com a representação dessa mulher dominadora.

O compositor tcheco Josef Mysliveček e seu estilo hedonista são temas de “Il Boemo” que vai estrear no Ouro Verde
O compositor tcheco Josef Mysliveček e seu estilo hedonista são temas de “Il Boemo” que vai estrear no Ouro Verde | Foto: Divulgação

MOZART

A cena em que o próprio Mozart aparece é fascinante. A criança-pianista expressa sua admiração por Myslivecek, antes de replicar e elaborar uma de suas composições de forma espetacular. A atenção aos detalhes musicais também se reflete na trilha sonora: ouvimos uma ópera enquanto Myslivecek a compõe mentalmente. As cenas de performance apresentam um tremendo trabalho vocal, principalmente a partir das vozes dos próprios atores – vários papéis importantes vão para os principais solistas, embora, como a famosa soprano Cristina Gabrieli, Barbara Ronchi seja dublada pela cantora tcheca Simona Saturová.

“Il Boemo” é um também drama trágico em que Myslivecek é mostrado como um personagem ambíguo, que parece não ter escolha a não ser cometer todo tipo de “traições” para chegar ao topo em seu mundo artístico. Ele é um homem gentil e inteligente que, a certa altura, percebe que se quiser ter sucesso terá que tomar algumas decisões que não serão justas para algumas pessoas e pelas quais ele próprio acabará pagando caro. E que, mesmo quando quiser modificar seu caminho trágico em determinado momento, perceberá que é impossível fazê-lo.

Para além do seu “disfarce” de filme antiquado de qualidade, “Il Boemo” sabe tecer ideias complexas sobre a relação entre arte e dinheiro, que podem ser extrapoladas para outras artes mais contemporâneas, como o cinema. Em certo sentido, Myslivecek poderia ser um cineasta moderno que enfrenta o compromisso de buscar fama ou sucesso. Esta é a clássica história de um artista que, para ter sucesso, jogou um jogo muito perigoso e acabou pagando as consequências.