Assisti (e revi no dia seguinte) na sessão de estreia em Londrina o “Megalópolis” de Francis Ford Coppola. Minha primeira reação não pode ser outra senão aplaudir sua incorruptível fidelidade a si mesmo. Muitos dos grandes mestres do cinema, quando já não têm nada a provar, tendem à pureza e à essencialidade: o que podem mostrar com uma imagem, já não precisam mostrar com duas. Mas o inventor da trilogia “Godfather”, fiel a seu espírito jovem de criança perenemente deslumbrada pelas possibilidades expressivas e pela magia do cinema, nesta sua grande despedida aos 85 anos e com uma carreira histórica na retaguarda, procedeu como aquele cineasta iniciante que gostaria muito, que precisava demais exteriorizar todo o cinema e toda a criatividade que tem dentro de si, e de uma única vez.

E acho que entendo que é esse turbilhão desenfreado como um tsunami de imagens, sons, ideias e temas que está desconcertando e irritando tantos pessoas. Críticos inclusive. Posso compreender os desagradáveis ​​qualificativos que os detratores estão dedicando ao filme. Mas penso sinceramente que talvez se devam à tentativa infrutífera de enquadrar mentalmente, nos moldes da narrativa cinematográfica mais comum, banal ou ordinária, uma obra que nasceu não para tirá-los, mas para expulsá-los completamente da zona de conforto

Portanto, me dirijo aos cinéfilos e possíveis espectadores do filme em exibição: a sugestão que me atrevo a dar, lançando mão da comparação mais óbvia, é que tentem acessar “Megalópolis” com a mesma mentalidade com a qual devemos ter em mente o universo de Fellini, aquele mestre italiano portador de visão tão singular e hipnótica que rendeu não só um adjetivo no glossário cinematográfico (o termo felliniano) como também mostrou às gerações de cineastas um caminho a seguir – como experimentar e se arriscar fundindo narrativas confessionais com fantásticos voos de imaginação. Porque neste momento estamos perante uma obra deliberadamente expansiva, excêntrica, muito pouco convencional, delirante, barroca, excessiva, caótica, imperfeita.

Um bizarro universo de sonho que gera regras próprias e onde, portanto, talvez também deixe de fazer sentido julgá-lo a partir dos parâmetros ortodoxos do que é “equilibrado”, ou “redondo”. Assim, depende apenas de nossa coragem querer mergulhar nisso, e o resultado, por essa mesma natureza, seguramente não admite meias medidas. Pode irritar a muitos, mas no que me diz respeito, só consigo pensar num adjetivo para descrevê-lo, enfaticamente: é uma obra fascinante ! Porque é muito difícil para mim encontrar um único filme que seja parecido; e só dizer isso, em 2024, com esta arte com quase século e meio de vida, parece quase impossível.

CATÁSTROFE DA CIVILIZAÇÂO

Estamos diante de um filme que também trata dos desastres provocados pelo homem. Além do mais, “Megalópolis”, obra literalmente fabulosa, centra-se na maior catástrofe causada pelo ser humano (homens e mulheres, não ignoremos a igualdade) : isto é, a civilização. É aí que começam os problemas para o espectador, pois os artistas que apontam com mais ou menos acidez (e com mais ou menos sucesso) as agressões que nos fazemos enquanto sociedade tendem a merecer o desprezo do público.

Coppola, homem brilhante que é, quer nos contar uma história muito cruel, mas muito realista, e não vai facilitar nada porque (deduzo), se ele vai ser ridicularizado de uma forma ou de outra, se possível quer conquistár o espectador merecidamente, e somente quem consegue entender sobre o que ele fala em seu trabalho mais pessoal. Em suma, “Megalópolis” não é uma simples história contada de forma convencional, mas sim uma monstruosa crítica social através de mensagens subliminares.

Por mais de 40 anos, Francis Ford Coppola tentou fazer “Megalópolis” decolar. O filme é um sonho febril experimental sobre uma fé moribunda na humanidade, e o fascínio pela construção de um amanhã utópico. Quando os poderes constituídos se colocam impedindo nosso caminho, como devemos cumprir o propósito de criar um legado e um mundo melhor para as gerações futuras? Este é um filme que não é apenas um deleite transcendental para os sentidos, é uma manifestação dos sonhos do cineasta para a humanidade e de sua dedicação ao cinema.

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