Em 1962, em um dos seus últimos filmes, John Ford dizia: ‘Quando a lenda é maior que o fato, imprima-se a lenda’. Essa é a lógica que dá suporte à boa parte da produção de Hollywood, e também ao épico “Babilônia”, atualmente em cartaz em Londrina. Trata-se do quinto longa de Damien Chazelle, que com “La La Land” se tornou o realizador mais jovem - até o momento - a conquistar o Oscar de Melhor Diretor.“Babilônia" recria um dos períodos mais ricos da história do Cinema: a transição entre os filmes silenciosos em direção ao cinema sonoro. Com uma trama que se passa em Los Angeles entre o final dos anos 1920 e o início dos 1930, o filme é uma atualização de outro clássico que revisitava esse período: “Cantando na Chuva”. A diferença, no entanto, é que Chazelle não se limita a um certo pudor e nem a um tom de homenagem oficial. Pelo contrário: ele aposta em uma narrativa de excessos, de estética barroca e estrutura não moralizante. Seus personagens não são construídos a partir de uma moral em busca de redenção. Eles vivem e sobrevivem sem culpa, apesar de estarem sempre em rumo à catástrofe.

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Isso ocorre porque em “Babilônia” a narrativa se baseia no conceito de alegoria: o mundo é mostrado de forma estilizada, figural, sem a pretensão de reproduzir a realidade de forma verossímil. O que vale aqui é fantasia, e todos os seus excessos visuais e sonoros.Essa opção por um tom de fábula desencantada, e que preserva uma certa crítica social, distingue o filme de outras produções contemporâneas. Chazelle não está preocupado em contar a história tal qual ela aconteceu, como a maior parte dos filmes ‘baseados em fatos reais’.

A partir do ponto de vista de um imigrante mexicano (Diego Calva), uma jovem ambiciosa (Margot Robbie) e um ator em crise (Brad Pitt), “Babilônia” põe em prática um velho conceito de Aristóteles: ‘a poesia é mais verdadeira do que a História’. Pois a História não corresponde à totalidade da experiência humana, enquanto a Poesia a transcende ao não querer imitá-la.Rodado ao longo de 74 dias com variados filmes 35mm a um custo de 78 milhões de dólares, “Babilônia” destaca-se sobretudo pelo visual. O diretor de fotografia Linus Sandgren super-expôs parte do negativo, em algumas cenas, com o objetivo de imprimir ao filme uma luz excessiva, granulada e analogicamente imprecisa.

'Babilônia": seus personagens não são construídos a partir de uma moral em busca de redenção; eles vivem e sobrevivem sem culpa
'Babilônia": seus personagens não são construídos a partir de uma moral em busca de redenção; eles vivem e sobrevivem sem culpa | Foto: Paramount Pictures/ Divulgação

O resultado é um tom impressionista que empresta ao filme uma dimensão de sonho.Com uma câmera que desliza sobre os cenários, e promove pans de uma forma inesperada, “Babilônia” é também uma tradução cinematográfica daquilo que o jazz oferece enquanto linguagem. Onde na música reconhecemos melodia e improviso, no filme poderíamos dizer que encontramos tramas e desvios, impulsos e devaneios. O filme todo é um mosaico de um puzzle que não se completa, pois não precisa se completar.

Em sintonia com o visual proposto por Sandgren está a direção de arte de Florencia Martin, que já havia criado um universo nostálgico em “Licorice Pizza”, de Paul Thomas Anderson. Anderson, aliás, parece ser a maior influência contemporânea de Chazelle - como se “Babilônia” fosse um complemento/homenagem a “Boogie Nights”. Em “Babilônia”, os cenários se apresentam de uma forma orgânica, quase viva, com cores quentes de alto contraste. Recuperam o Expressionismo, pois a lógica do filme é justamente essa: a do excesso, do tortuoso, daquilo que é instável.Com um montagem repleta de silêncios e de transições do mais alto som ao pleno silêncio, “Babilônia” é um raro caso de um filme de Hollywood que se permite a autocrítica por meio da linguagem. Se em “Sunset Boulevard”, de Billy Wilder, a reflexão vinha por meio da tragédia; se em “The Bad and the Beautiful”, de Vincente Minelli, a crítica era construída sob a lógica do melodrama; em “Babilônia”, a metalinguagem se expande a partir de uma linguagem poética.

A construção do filme por meio de espaços alegóricos e uma dramaturgia lírica evidencia que a crise atual de Hollywood talvez esteja no excesso de realismo e psicologia das grandes produções. Mesmo em filmes ambientados em universos de fantasia ou adaptações de quadrinhos, a narrativa geralmente é moralizante e se restringe a uma lógica de causa e consequência. Em “Babilônia”, por sua vez, a unidade de tempo e espaço dá lugar a uma estética do simultâneo e do fragmento. Não se trata da reprodução de uma realidade: e sim da realidade de uma linguagem.Por isso podemos dizer que “Babilônia”, de certa forma, nos oferece uma experiência sensorial e uma narrativa que se aproximam da poesia. Pois a tela de cinema, como dizia Godard, nos faz olhar para cima, para algo maior. Já a tela da TV (ou do computador) nos mantém olhando para baixo, para algo reduzido, sem a plasticidade onírica e a dimensão grandiosa que tornou o cinema algo ‘bigger than life’, maior que a vida. Quase infinito.

Como exemplo dessa reflexão por meio da linguagem, “Babilônia” apresenta em sua sequência final uma das mais belas sínteses do que é o Cinema em sua trajetória ao longo de três séculos. De descoberta técnica do século 19 à grande arte de massa do século 20, nesse início do século 21 o Cinema se aproxima cada vez mais da definição de Buñuel: a única linguagem capaz de expressar a realidade de um sonho. E acreditem: a vida é sonho!

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