É fácil imaginar uma cineasta menos habilidosa do que a chinesa Chloé Zhao sucumbindo às convenções narrativas de uma história convencional. Fern (uma Frances McDormand extraordinariamente realista) é uma mulher sexagenária cuja cidade em Nevada desapareceu quando a fábrica onde ela trabalhava fechou após o colapso econômico em 2008. Logo morre o marido e ela, depois de perder praticamente tudo, resolve entrar em sua van (batizada por ela de Vanguard), morar nele e sobreviver fazendo pequenos trabalhos temporários em diferentes locais. Empacotadora para a Amazon, em um restaurante, carregando sacos de batatas e limpando um acampamento para outros nômades como ela.

Um dos verdadeiros triunfos de “Nomadland” – e prova da maestria de Zhao como diretora e de McDormand como atriz - é que você nunca sente pena de Fern. E haveria muito pelo que sentir pena. Mas empatia é uma palavra mais adequada. Admiração, suponho, seria outra. Fern é uma mulher que (por qualquer padrão capitalista moderno) perdeu tudo. Emprego, família, casa. No entanto, ela não se perdeu. E é essa resiliência que acompanha situações impossíveis que brilha no rosto de uma atriz como Frances. Há momentos na vida em que todas as opções são ruins, mas você ainda precisa escolher. E é na maneira como você encara essas escolhas que se demonstra de que substância somos feitos realmente.

Fer, personagem de "Nomadland": filme mostra a precarização da massa trabalhadora, vítima de um sistema que os deixa, literalmente, na estrada
Fer, personagem de "Nomadland": filme mostra a precarização da massa trabalhadora, vítima de um sistema que os deixa, literalmente, na estrada | Foto: Netflix/ Divulgação

As pessoas que Fern encontra na estrada são outros viajantes permanentes, esses que por escolha ou necessidade vivem o dia dia em vans e trailers. Esses personagens – a maioria não atores – contam a Fern suas histórias, anedotas “on the road”, tudo envolto em uma atmosfera que é possível definir como “otimismo relutante”. Otimismo diante uma realidade avassaladora que toma vida na maneira como os nômades se despedem no momento em que alguém pega a estrada e se vai. Sem um “até logo”, nunca um “adeus”. Este é um dos muitos momentos improvisados e reais que a câmera de Chloé Zao capta e sublima.

De novo volta-se para a perícia dessa cineasta mais que nunca com a mão no Oscar de sua categoria. Alguém com menos confiança nas próprias habilidades teria tornado a história de Fern numa dessas de redenção. Talvez alguém com um filho com quem ela parou de falar e com quem tenta se reconectar. Não teria sido equivocado, mas o que Chloé Zao faz – entrando sem qualquer juízo de valor neste universo da personagem, sem um grande obstáculo a superar e sem qualquer sombra de maniqueísmo – é algo simplesmente excepcional. Nem mesmo o capitalismo parece ser o inimigo. Esta é apenas uma história de vida, cheia de escolhas, nuances e muitas vezes sem motivos ou explicações.

Em certo momento em “Nomadland”, alguém tenta defender o estilo de vida nômade de Fern como “algo que faz parte de uma longa tradição”. Mas o filme parece fazer um aceno ligeiramente suspeito para essa premissa. Por um lado, todo o filme atravessado por essa questão quase mitológica dos EUA, mas por outro já algo concreto que diz “não, isso não é fruto apenas de uma longa tradição”. Por trás de “Nomadland”,a verdade é que muito do que acontece, longe de ter aquele esplendor mítico, é produto de medidas muito especificas e atuais de precarização da massa trabalhadora. Essas pessoas que cruzam o país não são liricamente a nova encarnação daquele velho espirito, mas as vítimas de uma mudança progressiva no sistema totalmente voltada para a flexibilização do trabalho que os deixou onde estão (ou, precisamente, onde nunca estiveram).

Fer, personagem de "Nomadland": filme mostra a precarização da massa trabalhadora, vítima de um sistema que os deixa, literalmente, na estrada
Fer, personagem de "Nomadland": filme mostra a precarização da massa trabalhadora, vítima de um sistema que os deixa, literalmente, na estrada | Foto: Netflix/ Divulgação

Nada disso seria possível sem a presença fascinante de McDormand, porque enquanto uma coisa é ter uma performance impressionista e discreta, e outra é conseguir um tipo de ação não-performance radical, uma ainda mais difícil, quase perene, é alcançar um “não estar na tela”, tornar-se presença gigantesca ao mesmo tempo em que se apequena, no sentido de quase tornar-se invisível de tão discreta. Em cada tomada de Frances, na dignidade de seu retraimento, percebe-se uma qualidade zen, algo que vai além do personagem e que tem mais a ver com a Frances de carne e osso. Em seus melhores momentos – e são quase todos – parece que há uma autoimolação dos gestos que gera transparência. E aí, de repente, vemos que o rosto dela não é o rosto de uma mulher, mas um mapa mimetizado dos Estados Unidos; suas rugas, as estradas que cruzam o país; seus olhos tristes, lagos congelados; sua pele branca, o deserto coberto de gelo. Uma pintura da mais sofrida humanidade.