SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Numa mesa bem azeitada pela organização da Flip, a escritora colombiana Pilar Quintana discutiu com a brasileira Ana Paula Maia sobre um tema que perpassa a literatura de ambas, a animalidade do ser humano.

"Todo o universo que venho construindo traz uma presença muito intensa do animal humanizado, e o homem que se torna bestializado", afirmou Maia, que venceu duas vezes consecutivas o prêmio São Paulo de Literatura. "Tenho uma fascinação pela natureza bruta. Se você souber observar sua essência, ela ensina muita coisa."

Os romances da brasileira são marcados por personagens rústicos, ambiente rural e narrativas repletas de violência e horror.

Quintana, que acaba de lançar "A Cachorra" no Brasil, comentou que quis se aprofundar na relação das pessoas com animais porque sempre achou um assunto sub-representado na literatura.

"Houve uma mudança muito rapida, em que os animais passaram a ser parte das famílias. Quando eu era pequena, os gatos viviam longe e serviam para comer ratos. Hoje as pessoas comemoram aniversário do cachorro, vão ao cemitério fazer velório quando morrem."

Ela contou que, na época em que morava na região mais pobre do Pacífico colombiano --local onde viveu por nove anos e inspirou o cenário de "A Cachorra"-- notou que as pessoas dali comiam todos os animais, sem distinção. "Isso era impensável para mim antes."

Leituras que fez a partir da década de 1990, que procuravam mostravar o ser humano como um animal comum imbuído por acaso de racionalidade, foram forte influência artística para ela.

"No sexo, quando sentimos desejo, tiramos a roupa, tiramos todas as máscaras e nos levamos por nossos instintos", comentou. "Mesmo continuando humanos, ali somos animais como quaisquer outros."

A mesma lógica guiou sua abordagem da maternidade, tema central do romance recém-publicado pela editora Intrínseca. "Quis olhar para esse desejo de ser mãe e a própria maternidade como um instinto bem animal."

Na obra, a protagonista Damaris, que não consegue engravidar mesmo após décadas de tentativas, acaba criando uma relação de maternidade deturpada com uma cachorra que adota no começo da narrativa.

"É um livro muito cheio de monstros. O mar, a selva, o esposo da protagonista, todos têm uma certa monstruosidade. Mas o mais horrivel é que Damaris, que sempre esforça para ser boa, descobre que tem o monstro dentro de si. penso que esse é o mais assustador."

A pergunta a que ela queria chegar, no fim, era --"O que teria que acontecer a mim para que eu me convertesse no pior que posso chegar a ser? Para fazer o que considero impossível?"

Esse horror psicológico é um dos traço artísticos que consagraram a carioca Maia, tanto em livros como "Enterre Seus Mortos" e "Assim na Terra como Embaixo da Terra" como no roteiro da recente série "Desalma", do Globoplay.

"Eu sempre sinto vontade de ir para esses lugares estranhíssimos, a que eu me sinto presa para criar", disse, em referência aos descampados ermos em áreas rurais onde a ação de seus livros costuma acontecer. "Eu não tenho a visão de que aquele é um espaço horrível. É estranho, repulsivo, desconfortável, mas de algum jeito é agradável para mim."

Maia comentou ser uma daquelas pessoas que se sentem confortáveis, e não afugentadas, ao ver um filme de terror. "Eu evito ver muito tarde", divertiu-se. "Mas eu sinto um carinho, um abraço, um aconchego."

A visceralidade, afinal, é algo que está presente não só na literatura feita por Maia, mas no seu próprio processo criativo.

"Acho que todo autor escreve intuitivamente, por mais que tenha uma bagagem por trás. Eu já fui completamente engolida já pelo que eu escrevo. Estou entregue", afirmou. "Alguém tem que ser o preparador de corpos, fazer o trabalho sujo. Acho que é isso que eu sou."

A conversa foi mediada pelo editor Schneider Carpeggiani. A Flip segue até domingo, com mais sete mesas veiculadas de forma virtual e gratuita.