Através dos olhos grandes e expressivos de um burro, o muito estimado diretor e co-roteirista polonês, o veterano (84) Jerzy Skolimowski, conta a história do animal tão visualmente arrebatadora quanto emocionalmente devastadora. E saiu de Cannes em 2022 com o Grande Prêmio do Juri.

O modelo (não se trata de refilmagem; inspiração, é mais justo definir) para “Eo”, cujo título em português deriva da sonoridade do zurro do animal – em inglês a onomatopéia seria mais ou menos grafada como “hee-haw” – é o austero diretor católico francês, o já falecido Robert Bresson, que em 1966 realizou “Au Hasard Balthazar/A Grande Testemunha), sobre uma adolescente cujo burro é atormentado por uma série de donos. Enquanto Bresson usou seu animal como um meio de observar diferentes tons de fragilidade e crueldade humana na França provinciana, Skolimowski adota uma abordagem experimental muito mais direta, preenchendo seu filme com imagens de tirar o fôlego e uma paisagem sonora assustadora no topo de uma narrativa minimalista.

A clássica austeridade daquele filme em preto e branco se concentrou mais nas pessoas ao redor do burro Balthazar durante seu trânsito desde o nascimento até a morte, embora sugira que o burro seja uma figura de Cristo. Agora, Skolimowski em grande parte (embora não totalmente) evita a religião, substituindo-a por uma preocupação mais que oportuna: a destruição ambiental.

O diretor apresenta Eo em uma sequência tingida de vermelho que, como muitas no filme, é inicialmente desconcertante. Acontece que é uma função de circo com o burro e a pessoa que é sua melhor amiga, uma jovem dançarina (Sandra Drzymalska). O relacionamento deles logo se desfaz. Enquanto os manifestantes dos direitos dos animais fazem piquetes no circo, os credores chegam e apreendem seus poucos animais: dois camelos e Eo.

Assim começa uma odisseia que conduz a besta (interpretada por seis burros cinzentos) por múltiplos donos e circunstâncias, incluindo vários episódios em que ele (ou ela) vagueia livremente. Entre eles estão alguns momentos cômicos e muitas passagens encantadoras, capturadas esplendidamente pelo trabalho da câmera imersiva/expressionista de Michal Dymek. Mas o clima pode mudar repentina e violentamente, como quando um idílio noturno em uma floresta cheia de criaturas nada ameaçadoras é interrompido pelas luzes e sons dos rifles guiados a laser dos caçadores. Eo experimenta, principalmente como observador, mas às vezes como vítima, o brutalidade de uma fazenda de peles, um matadouro e uma batalha cruel e sem sentido entre tribos rivais de hooligans do futebol. Ele também passa por paisagens degradadas pela atividade humana, transportando lixo por um vasto ferro-velho e vagando sozinho por moinhos de vento e uma enorme barragem. Raposas e pássaros estão entre os danos colaterais que Eo encontra.

O burro também observa maravilhado cavalos saltitando em um campo, vislumbrados pela janela estreita de uma van de transporte, e peixes tropicais em um tanque na vitrine de uma loja. A natureza está em toda parte. Cercada e aprisionada.

Essas sequências, muitas vezes mostradas em planos gerais, retratam a realidade objetiva. Mas grande parte do filme é em close-up ou subjetividade onírica, em uma aparente tentativa de visualizar a experiência de Eo no universo.

(Em devaneio curioso, o burro parece se transformar em um robô.) A partitura de Pawel Mykietyn muda de sussurrante para épica e às vezes é interrompida por música eletrônica, ópera ou heavy metal tocada por humanos em sua maioria grosseiros.

A montagem rápida do filme e a continuidade irregular funcionam como meios paralelos de simular a compreensão limitada do animal sobre suas viagens e sofrimentos. “Eo” é lindo e misterioso e tem muito de surreal mais sintonizado com a sensação do que com a narrativa. Se os espectadores às vezes podem se sentir perdidos, isso apenas os aproxima da consciência do burro. Skolimowski e a produtora/co-roteirista Ewa Piaskowska (esposa do diretor) fazem um movimento equivocado no final do filme, depois que Eo foi transportado para uma propriedade na Itália por um viajante simpático (Lorenzo Zurzolo). O burro pasta ao longe, enquanto a atriz Isabelle Huppert faz uma aparição especial em breve cena que talvez pretenda vincular “Eo” ao classicismo do cinema francês que o inspirou. Mas o episódio apenas distrai da história. Não à toa o animal logo se despede assim que percebe um portão aberto...

Mas todo o resto em “Eo” é perfeitamente concebido e executado. O diretor, que fez filmes de primeira linha, mas nunca amplamente vistos, como “Deep End” (1970) e “Moonlighting” (1982), ainda é um cineasta seguro e audacioso. O destino de Eo é chocante e nada surpreendente, mas a tristeza da saga do burro é pelo menos parcialmente amenizada pela empatia arrebatadora com que é contada.

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