Neguinho da Beija- Flor: carnaval sem samba na pandemia
"Manter Carnaval na pandemia seria desfilar por cima de cadáveres", diz o sambista
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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021
"Manter Carnaval na pandemia seria desfilar por cima de cadáveres", diz o sambista
Júlia Barbon/ Folhapress
Rio de Janeiro - Não tem Carnaval, mas tem sorriso. Neguinho da Beija-Flor, um dos maiores intérpretes do Carnaval brasileiro, está fazendo de conta que este ano sem folia é só "outro 7 a 1". Desligou a televisão e "só volta depois da Quarta-Feira de Cinzas". Com a voz rouca e potente, em frente à parede cravada de prêmios no apartamento com vista para o mar em Copacabana (zona sul do Rio), ele fala sobre os dias que passou internado, os amigos que perdeu para a Covid-19 e a impossibilidade de desfilar "por cima de cadáveres". Sobrevivendo de cachês simbólicos de lives, ele lamenta o desemprego no setor. Também comenta a criminalização do samba e do funk após a morte do neto Gabriel, 20, durante um confronto num baile no ano passado, e cita o racismo que persiste mesmo depois de 46 anos de carreira. Insiste, porém, que a vida não lhe dá motivos para silenciar o riso.
Qual é o sentimento de viver um ano sem Carnaval, pela primeira vez em mais de 40 anos?
O Carnaval é a minha vida, é a minha história. O desfile das escolas de samba é considerado o maior espetáculo a céu aberto do planeta, imagina você ser uma das peças disso. Então é muito triste, um luto, como se estivesse vivendo um velório. Mas estou consciente de que tem que ser dessa forma, a vida em primeiro lugar. O que me conforta é saber que em 2022 tem mais. Há três meses você foi internado com Covid, depois de ter tratado um câncer por sete anos.
Como o vírus te afetou?
Já passei por tudo. Tenho certeza de que Deus gosta de mim, porque lá atrás eu já fiz tratamento de pulmão, depois câncer [de intestino], chikungunya e agora coronavírus. Fiquei uns três dias internado, mal. Eu só pedia para não ser intubado [não foi]. Fiquei cerca de um mês com falta de ar, mas agora estou bonito, estou até correndo.
Teve parentes ou colegas próximos afetados pela Covid?
Minha esposa e meu filho mais velho. Da minha família não morreu ninguém, mas morreu meu [ex-]presidente da Beija-Flor [Farid Abrão David, prefeito de Nilópolis e irmão do atual presidente da escola, Anísio Abraão David]. Também perdi seis pessoas da bateria, perdi o presidente da ala de compositores, perdi compositores. É muita gente, por isso eu estou de pleno acordo que não tenha Carnaval, porque seria desfilar por cima de cadáveres. Não tem nem como você estar ali cantando e pensando nas pessoas que estavam do seu lado esses anos todos e não estão mais. Vamos ter paciência e pensar em 2022, a vacina está aí, é a grande esperança para o mundo da música e do entretenimento. Eu estava com uma turnê de 20 dias nos EUA e 60 dias na Europa de maio a julho, tudo cancelado.
Como tem sido sua rotina sem a agenda do Carnaval?
Hoje eu estaria a mil por hora: corre, vai, volta, vê credencial, passa a música. Agora tenho ficado em casa, como todo mundo. Tenho mantido a aula de canto, me exercitado e sobrevivido de lives. Graças a Deus tenho uma agenda muito solicitada, e nessa situação a opção foi essa, embora os cachês sejam simbólicos. Senão como é que eu ia pagar esse apartamento aqui, manter esse padrão de vida em Copacabana? As lives são remuneradinhas, "inhas". Se você ganha dez, em uma live ganha dez vezes menos. É uma ajuda de custo, paga o deslocamento, os músicos. O prefeito Eduardo Paes (DEM) decidiu fazer um edital para projetos de trabalhadores do Carnaval de rua, e deve fazer o mesmo para os trabalhadores das escolas de samba.
Acha que é suficiente?
Não é suficiente. A maioria das escolas não tem recurso para remunerar os funcionários, que ficaram desempregados, então é uma ajuda de custo também como as lives, não é um salário. Um funcionário de um barracão, o mais simples, que ganha um salário mínimo, essa ajuda de custo vai ser de R$ 300, R$ 400, só uma cesta básica. A prefeitura do Rio decidiu multar e apreender mercadorias ou instrumentos musicais de quem desrespeitar as regras no feriado. As escolas de samba e blocos também podem ser proibidos de desfilar em 2022.
Você concorda com esse tipo de medida?
Se não pode, não pode. Já não houve as maiores festas do Brasil e do mundo: Festival Folclórico de Parintins [AM], São João de Caruaru [PE] e Campina Grande [PB], Oktoberfest [SC], até a Olimpíada no Japão. A gente fica triste, mas não tem que haver Carnaval também. Faça como eu, que vivo do Carnaval mas decidi passar o feriado tranquilo na casa de um amigo na Região Serrana. Não vou nem ligar a televisão, quero esquecer Carnaval. Só volto depois da Quarta-Feira de Cinzas. O Brasil perdeu a Copa do Mundo em 1950, perdeu de 7 a 1 em 2014 e também tivemos que nos conformar. Vamos fazer de conta de que é outro sete a um. O ex-prefeito Marcelo Crivella foi preso exaltando o corte que fez nas verbas do Carnaval, um dos motivos da denúncia contra ele [a Promotoria diz que suposta corrupção envolvia a Riotur, empresa municipal que organiza o evento].
Nas redes sociais os sambistas em geral comemoraram a prisão, você foi um deles?
Antigamente tinha um provérbio que dizia que o castigo vinha a cavalo. Agora vem via internet, na hora. Ele cortou a verba do Carnaval mas as crianças continuam na rua, o povo continua sem moradia, sem emprego. O que adiantou tirar a verba? Eu não entendo. Se desse prejuízo, ok, mas essa verba tem retorno e gera milhões de empregos. Ele dava R$ 1 milhão para cada escola, mas tinha R$ 4 bilhões de lucro. Antes de se eleger, Crivella fez uma reunião com todos os dirigentes de escola de samba e jurou de pé junto que religião era uma coisa e Carnaval era outra, que não ia se meter. A primeira coisa que ele fez foi justamente o contrário, e aí praga de sambista pega. Aconteceu o que aconteceu. Graças a Deus agora temos um prefeito que entende que o Rio de Janeiro vai perder sem o Carnaval. Os hotéis estão desesperados, a cerveja, quem depende do evento... Quantos milhões de turistas vão deixar de se hospedar, de consumir?
Além da pandemia, você passou por outro episódio muito difícil no ano passado, a morte do seu neto. Na época você disse que esperava que a polícia e a Justiça fizessem seu papel. Elas fizeram?
Estão fazendo, eu tenho acompanhado. Segundo o delegado, já recolheram as armas dos policiais e é a minha grande esperança. A Justiça tarda, mas não falha. O que eu sei é que ele estava no baile funk armando a lona para o show, o baile nem chegou a acontecer. Começaria às 22h e o fato aconteceu às 20h. Não só ele mas outros dois morreram também no tiroteio. [Gabriel Marcondes, 20, foi baleado em outubro de 2020, num confronto entre policiais e traficantes no Morro da Bacia, em Nova Iguaçu. A PM diz que policiais foram recebidos a tiros ao verificar uma denúncia de baile não autorizado].
O funk é criminalizado como o samba um dia foi?
E como! O samba foi ainda mais criminalizado. Se tivesse marca de violão nos dedos, se fosse pego com pandeiro, violão, o sambista era preso pela lei da vadiagem. Tudo que vem da classe menos favorecida, do povão, é censurado. Por que a ópera não é? A umbigada [dança afro-brasileira praticada nos quilombos], o samba e agora o funk, que já tomou conta do mundo. Hoje eu chego nas minhas turnês na Europa e está sempre rolando funk, mas aqui queriam acabar com ele. Eu fui parar na Câmara dos Deputados por causa de um deputado que queria fazer uma lei para acabar com o funk [Charlles Evangelista (PSL-MG), que depois retirou o projeto de lei]. Eu, Rômulo Costa [dono da gravadora Furacão 2000] e Ivo Meirelles [ex-presidente da Mangueira], fomos lá dizer: deixa o funk rolar. Tem um samba que canta: "O samba já foi marginalizado, há bem pouco tempo passado, cantar samba era pecado capital, mas hoje até a sociedade, despida em sua vaidade, canta samba quando chega o Carnaval" ["Clareou", interpretada por Alcione]. Você já citou em entrevistas o caso de uma mulher que pediu para trocar de lugar no avião ao sentar do seu lado.
Quais outros episódios de racismo te marcaram?
Isso acontece até hoje, se eu fosse ligar para isso eu não viveria, eu seria um revoltado. Até mesmo aqui na rua as pessoas não me reconhecem de imediato, seguram a bolsa com mais força quando me veem. Tu chega no shopping, as pessoas estão distraídas e, quando notam que tem um negro, se espantam. Eu já nem ligo mais. Eu sou tipo aquele jogador Daniel Alves, que o cara jogou uma banana, ele pegou a banana, descascou, comeu e continuou jogando.
Esse sorriso constante que você sempre teve vem de onde?
Eu vou te contar uma história. Quando eu comecei na noite, comecei cantando de graça, os donos da casa davam o quanto queriam, e a atração era um amigo meu, Wellington. Ele tinha olhos azuis, pinta de galã, cantava em inglês, francês e italiano. Quando ele ia descansar no intervalo, eu, Neguinho da Vala na época, ia lá e cantava uns três ou quatro sambinhas. Aí passou, eu entrei para a Beija-Flor, gravei disco, alcancei uma certa notoriedade. Um dia eu estava no centro da cidade e um cara de terno veio falar comigo: "Tu não tá lembrado de mim? Eu sou o Wellington, bicho. Eu falo para a minha esposa, para os meus filhos, que você começou a cantar comigo", e até chorou de emoção. Você vê: o cara que tinha tudo para ser o bambambã não chegou e eu cheguei. E aí você quer que eu fique de cara feia? Quantos caras bons começaram comigo e não chegaram? Eu tenho o privilégio de dizer que vivo da música. Luiz Antônio Feliciano Marcondes, 71 Cantor e compositor, é desde 1976 o intérprete oficial da escola de samba Beija-Flor. Recebeu cinco vezes os prêmios Troféu Tamborim de Ouro e Estandarte de Ouro e criou o bordão "Olha a Beija-Flor aí, gente!". Nasceu em Nova Iguaçu (a 40 km do Rio). Casou-se na Marquês de Sapucaí com Elaine Reis há 12 anos, tem quatro filhos e três netos