Outubro de 2013. Estou em São Paulo, às voltas com distribuidoras acertando títulos novos e datas para a programação da sala de cinema alternativo da UEL, naquela época o Cine Com-Tour. Tudo acertado, sobra um tempo (curto) antes da volta à Londrina. Não por coincidência tinha amarrado minha viagem também a um evento que perseguia com obsessão desde Veneza, um ano antes: uma grande, detalhada exposição sobre a obra de um de meus cineastas de cabeceira – “Stanley Kubrick: The Exhibition” – em São Paulo, ocupando generoso espaço no Museu da Imagem e do Som, na Avenida Europa. Na correria da mostra veneziana, minha visita ao evento tinha se reduzido a menos de uma hora, comprimida entre intensa jornada de filmes e coletivas. Quase nada, diante da magnitude do material oferecido à perplexidade e ao encantamento proporcionados por uma exposição que, agora em São Paulo, tinha mais de 500 itens (em três andares) disponíveis à cinefilia.

Estava quase tudo lá: a coleção de fotos que o cineasta fez quando fotógrafo para a revista “Look”, os figurinos do homem pré-histórico e do astronauta de “2001”, assim como a maquete original da nave; a máquina de escrever, o machado e os vestidos das gêmeas de “O Iluminado”; a clássica roupa de Malcolm McDowell e as estátuas das mulheres nuas da leiteria Korova de “Laranja Mecânica” e vasta coleção de objetos (roteiros, cenários) que fizeram parte de sua reduzida (treze longas , dois curtas) mas fundamental filmografia. Claro, meu encanto ao ver a gênese e os detalhes do universo de maravilhas kubrickianas estava satisfeito. Ou quase. No último andar do prédio do MIS, com frequência discreta, os tesouros do último sonho não concretizado. E onde, sem ver passar, passei a maior parte do tempo da visita. “Napoleão”, que está cidade na versão desajeitada de Ridley Scott, foi um projeto ambicioso e inacabado de Kubrick. No final dos anos 1960, logo após “2001”, ele trabalhou exaustivamente na pesquisa e desenvolvimento de um épico sobre a vida de Napoleão Bonaparte, algo que estava destinado a ser uma produção colossal. Nem seria para menos: estamos falando do criador de “2001: Uma Odisséia no Espaço”, “Laranja Mecânica” e “O Iluminado”.

Kubrick dedicou uma quantidade significativa de tempo e recursos a este projeto, eventualmente acumulando amplos arquivos de informações detalhadas sobre a vida e as campanhas de Napoleão. O roteiro, que Kubrick escreveu junto com o historiador Andrew Birkin, era extenso e cobria muitos aspectos da vida do líder francês. No entanto, apesar dos esforços consideráveis investidos no projeto, o filme nunca foi realizado.

Vários fatores contribuíram para o cancelamento, incluindo a falta de apoio financeiro e preocupações logísticas relacionadas com a magnitude da missão a que se propôs. A visão meticulosa de Kubrick e o desejo de autenticidade histórica também aumentaram os custos e a complexidade da produção.

Estava tudo lá. Textos, desenhos de produção, pré-tratamentos de roteiro, storyboards, maquetes, figurinos de toda espécie (uniformes e trajes domésticos), opções de armamentos, sugestões de sets, tudo enfim que o projeto, se realizado, mostraria na tela: um nível de energia e paixão sem precedentes do cineasta. Se ganhasse vida, teria sido seu filme mais ambicioso e desafiador. Porque Kubrick, sendo aquele que foi, mergulharia fundo na mente de Napoleão, tentando compreender como um mestre estategista com tal inteligência pode ser vítima de desvios irracionais e tentações de consequência desvastadoras.

Apesar do cancelamento, o projeto Napoleão de Kubrick continuou a ser objeto de enorme interesse e especulação no mundo do cinema. O trabalho e a pesquisa realizados para este filme influenciaram os projetos posteriores de Kubrick, como “Barry Lyndon”. Além disso, os arquivos detalhados, minuciosos que Kubrick compilou durante a pesquisa tornaram-se recurso acadêmico valioso para estudantes da vida de Napoleão.