Rio, 17 (AE) - O compositor e pesquisador de cultura negra Nei Lopes sempre teve a cantora Clementina de Jesus como um ídolo, personificação das idéias que estuda e defende, desde que a viu cantando pela primeira vez, no antológico espetáculo "Rosa de Ouro", em 1966. Essa admiração virou homenagem no musical "Clementina", que estréia sexta-feira, no Centro Cultural José Bonifácio, na Gamboa, centro do Rio, dentro das comemorações do Dia da Consciência Negra.
O lugar não poderia ser mais adequado. A Gamboa é um dos bairros mais antigos do Rio, para onde se mudaram os ex-escravos depois da Abolição, em 1888. Lá também havia rodas de samba e jongo, nas quais Clementina aprendeu a cantar e dançar nas primeiras décadas deste século. Um tipo de música que deu origem ao samba, mas só ficou conhecido do grande público em meados dos anos 60, exatamente na voz dela. O espetáculo é uma idéia antiga de Nei Lopes, que, a par de sua carreira de compositor de sucesso, sempre pesquisou a cultura afro-brasileira e já havia produzido outro espetáculo "Oh! Que Delícia de Negras!", no Teatro Rival, há dez anos.
Desta vez, além de escrever o texto, ele compôs as músicas - jongos, sambas-de-roda e partidos-altos - "que ela teria ouvido ou cantado". Clementina de Jesus era uma paixão antiga. "Para mim, ela é o elo perdido de nossa cultura, pois popularizou as músicas de trabalho e de cerimônias religiosas dos escravos que depois deram no samba e na nossa música popular brasileira", explica Lopes. "Quando a ouvi pela primeira vez, ainda não compunha profissionalmente nem tinha a consciência da importância da nossa música, mas, desde então, ela influenciou todo o meu trabalho como compositor e estudioso da cultura negra".
Nei Lopes chegou a conviver com Clementina, numa atitude de fã declarado, entre tantos que ela teve desde o primeiro show
já aos 62 anos, até o fim da vida, em 1987. "Fui à casa dela algumas vezes, mas sempre intimidado por estar diante de meu ídolo", lembra ele. "Era uma pessoa alegre, espirituosa, muito diferente da imagem melancólica e decadente que ficou, dos últimos anos, quando estava doente, mas ainda precisava se apresentar para pagar as contas". Show - Em "Clementina", Lopes deixa esse lado triste para mostrar a sambista festeira, que começou a cantar aos 12 anos, mas só foi descoberta depois dos 60, pelo pesquisador Hermínio Bello de Carvalho, cantando e dançando numa festa do Outeiro da Glória, uma das primeiras igrejas do Rio. "Divido o espetáculo em quatro festas e mostro Clementina de Jesus da infância até depois da morte, quando ela é recebida com todas as honras no Céu, pelo poeta Manuel Bandeira", adianta ele. "Começa com as festas de Valença, onde ela nasceu, vai para a Festa da Penha, no subúrbio carioca onde frequentava as rodas de samba, depois para a Festa da Glória, onde foi descoberta e, finalmente, a festa no Céu".
A encenação, dirigida por Emmanuel Santos, aproveita a arquitetura da sede do Centro Cultural José Bonifácio, um prédio de meados do século passado. Os atores são adolescentes da região que trabalham desde o início do ano no musical, que será prova de conclusão do curso regular de teatro do centro. Eles se revezam nos diversos papéis e a personagem-título é vivida por duas atrizes. A música será ao vivo, executada por músicos profissionais.
"Todos os anos produzimos um espetáculo com os alunos, mas com uma produção profissional, embora eles ainda sejam amadores", explica o diretor do centro, Hilton Cobra. "Como o espetáculo tem patrocínio apenas da Secretaria de Cultura do Município, só teremos duas semanas de temporada, esta e a próxima". (B.C.S.)