Com todos os vastos recursos oferecidos por seu controle monopolístico da indústria do entretenimento visual, a Walt Disney Company refez mais um filme de sua vasta história da animação. Mas se a intenção de trazer Mulan (um dos destaques da "Renascença Disney" dos anos 1990) para a ação ao vivo era dar a ela alguma profundidade extra, isso só foi alcançado em termos gráficos; como personagens, os humanos de carne e osso da adaptação da neozelandesa Niki Caro do poema narativo “A Balada de Mulan” são criações muito mais superficiais do que seus predecessores animados bidimensionalmente no final do século 20. E esta versão da história da mulher guerreira que teria vivido na China durante a militarizada dinastia Han (206 a.C a 220 d.C) exibe uma visão mais antiquada dos papéis de gênero do que aquela encontrada nos filmes wuxia que a inspiraram. E as acrobacias dos stunts não funcionam melhor do que as canções do original animado de 1998.

A proposta básica é mais ou menos a mesma: Hua Mulan (Liu Yifei) é uma mulher com o dom para o combate, mas foi excluída do serviço militar simplesmente por causa da ideia de que o “Qi” (no original chinês), ou o “ch’i” (na forma ocidentalizada), a energia, a força cósmica e vital de um guerreiro pertence somente ao universo masculino – então ela se traveste de homem para lutar no exército do imperador no lugar de seu pai, idoso e deficiente físico.

A jovem atriz Liu Yifei, nascida em Wuhan (todos se lembram, não...?), é presença formidável como Mulan, mas deram à atriz pouco material para trabalhar, fator agravado pelo ritmo implacável do filme. Assim, como ela quase não tem tempo para respirar, seus momentos de dúvida, de busca de autocapacitação e seus desafios dramáticos são roubados pelas correrias, lutas e malabarismos coreográficos. E apesar da circulação na tela (perdão: telinha...) de inúmeras lendas do cinema chinês (Donnie Yen e Jet Li, este ultimo dublado sem razão aparente), há uma rala intriga na composição dos personagens.

Mulan: versão 2020 é menos  do que a versão original em termos ideias
Mulan: versão 2020 é menos do que a versão original em termos ideias | Foto: Reprodução

Notável exceção é Xian Lang, uma bruxa guerreira interpretada com genuína majestade pela bela cinquentona (!) Gong Li, musa de inúmeras obras-primas do cinema chinês das décadas de 1980 e 90. Atraída para o lado dos Rouran (que substituem os hunos do original de 1998), Xian Lang fala em voz alta sobre os paralelos entre ela e Mulan, e é uma contrapartida muito mais interessante do que os compatriotas da heroína.

Muito da expectativa pelo olhar da diretora Niki Caro sobre a história – é óbvio que ela dirigiu “Mulan” também por seu interesse por protagonismo feminino em um mundo dominado por homens (a respeito, consultar sua filmografia, reduzida mas particularmente interessante nesse aspecto) – estava focado na ideia de que ela iria antagonizar o gênero wuxia (wu significa militar ou armado, e xia, “honrado”, “herói”) como Ang Lee já havia feito em “O Tigre e O Dragão”, uma desconstrução introspectiva sobre o imaginário chinês visto pelo Ocidente. Com certeza o filme de Lee sobre mulheres guerreiras não teria obtido o mesmo sucesso se não fosse pela popularidade de “Mulan”, a animação.

É tentador dar a “Mulan” um crédito como primeiro remake de um blockbuster da Disney a abraçar totalmente a ação ao vivo, evitando recursos de CGI (computação digital) ou abusando de belas locações. Mas isso seria abaixar muito o padrão. As canções foram deixadas de lado (menos “Reflection”, regravada por Christina Aguilera) para focar na ação, mas os resultados não são estimulantes. A coreografia que desafia a gravidade presta alguma homenagem aos filmes wuxia, mas não incorpora nada de sua elegância, graça ou ritmo, muito por culpa de uma montagem desorientada, um trabalho de câmera agitado em demasia e uma encenação confusa (exceção honrosa é a luta sobre um andaime enorme e elaborado, já que as batalhas em grande escala parecem sofrer de inércia – especialmente quando confrontadas com aquelas de épicos chineses como os de Zhang Yimou, “Herói” e “O Clã das Adagas Voadoras”.

Resumindo: este “Mulan” com cara de novo é bem menos moderno em ideias, especialmente com um final que alinha totalmente o woman’s liberation com o serviço militar e a fidelidade às monarquias hereditárias. E nesta versão 2020 quase não há lugar para o humor, que tão bem funcionou na primeira vez, com o então verborrágico dragão Mushu (voz original de Eddie Murphy). Quem voa agora é uma estranha ave, misto de arara e fênix. Não reencontrei aqui aquela aventura de genuína sinceridade dos idos do século passado. Esperem para ver. Ou não.

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