Morre a pérola do pagode
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terça-feira, 03 de novembro de 1998
A sambista Jovelina Pérola Negra, de 54 anos, morreu na madrugada de ontem, em sua casa, em Jacarepaguá, na zona oeste. A filha de Jovelina, Cassiana Belford dos Santos, disse que a mãe sofria há muito tempo do coração. A idade foi chegando, ela foi engordando, e fumava, disse Cassiana, que descobriu o corpo da mãe. Ela contou que de madrugada levantou para dar de mamar à filha, e ao passar pelo quarto de Jovelina, notou que a artista estava de bruços e ofegante. Depois de esquentar a mamadeira, Cassiana chamou o irmão, José Renato, e tentou reanimar a mãe, sem sucesso.
Gorda, baixinha, brigona, a guerreira Jovelina Pérola Negra foi uma das peças importantes da condução do samba de fundo de quintal e do pagode, especialmente da linha de frente da música popular brasileira.
Surgiu para o público como um furacão, no início dos anos 80 que também revelaram ou fixaram definitivamente os nomes de Dona Ivone Lara, Zeca Pagodinho e firmaram o próprio Grupo Fundo de Quintal, revelado no fim da década anterior. Foi a grande voz feminina do pagode verdadeiro, uma espécie de mãe do gênero, que abriu trilhas para que Zeca Pagodinho, que tanto lhe deve, chegasse ao estrelato.
Nos tempos da reconquista dos direitos civis e do orgulho nacional, Jovelina era a imagem ideal da antiestrela. A empregada doméstica que, de uma hora para a outra, ocupou o palco, as páginas dos jornais, a televisão. Usava perucas enormes, vestia-se com brilhos de panos acetinados em cores fortes, equilibrava-se sobre os saltos que milagrosamente resistiam aos rodopios e ao bater de pés do movimento da roda - era aquela mulher que vemos nas ruas, todos os dias, revelando a face oculta. Não foi por outro motivo que os políticos começaram a chamá-la a seus palanques.
Seria a herdeira natural do trono de Clementina de Jesus, com o vozeirão áspero de pastora do Império Serrano que o público conheceu em 1984, quando saiu o primeiro dos seis oito discos, alguns dos quais foram relançados em CD. Fez alguns grandes sucessos populares, como Feirinha da Pavuna ou o Pagode da Laranja, e chegou a vender mais de 100 mil exemplares - o disco de ouro da indústria fonográfica - de dois títulos: Jovelina, de 1985, e Sorriso Aberto, de 1987.
Tinha projeto para um novo CD, que deveria ser gravado no ano que vem, depois da bem-sucedida volta ao disco, em 1996, com o CD Samba Guerreiro. Todos os seus títulos são da gravadora RGE, onde também começou Zeca Pagodinho e onde está até hoje o Fundo de Quintal. Ao lado de Zeca, em abril, participou do Panorama Percussivo Mundial, o Percpan, em Salvador, e dominou o público com os versos maliciosos, engraçadamente autogozativos que tirava como nenhuma outra mulher que tenha saído das rodas do subúrbio para chegar a outros ouvidos.
Sua música forjou-se no amálgama do jongo e do calango rural, que ouvia da avó e da mãe. No final dos anos 70 eram comuns os discos reunindo vários artistas de uma mesma tendência - chamavam-se paus de sebo - para uma primeira exposição. Os que mais agradassem, ganhariam o trabalho solo. Jovelina participou do pau de sebo Raça Brasileira (não confundir com Raça Negra, que estragou com tudo o que Jovelina e seus afilhados trouxeram).
Ela nasceu e cresceu no subúrbio de Belfort Roxo, espécie de gueto carioca do pagode e do samba de fundo de quintal, de onde saiu, com o estrelato, para Madureira - foi para perto do samba. Revelava-se influenciada não por Clementina, mas por outro intérprete da barra-pesada e das alegrias possíveis da vida pobre do subúrbio, Bezerra da Silva. Mas se, dele, aproveitou a picardia, acrescentou ao pagode o humor malicioso, a crônica das conversas de botequim, pequenos grandes prazeres cotidianos. Ando pelos sete cantos/ Não sou de quebrantos/ Eu sou de cantar, cantava em Santo Forte.ReproduçãoJovelina Pérola Negra com o Grupo Fundo de Quintal: vida dedicada ao sambaGustavo Alves
Agência Estado

