São Paulo, 21 (AE) - Quase sempre é assim: Millôr Fernandes está tranquilo em sua casa, em Ipanema, quando o telefone ou a campainha toca. Ele atende - às vezes - e lá está algum diretor, produtor, ator com um projeto na mão. Todo trabalho que o incansável tradutor, humorista, dramaturgo e jornalista fez até hoje nasceu da vontade alheia. "Não sei por que meu nome sempre aparece na cabeça das pessoas", diz Millôr, com uma surpreendente modéstia.
No ano passado, foi a vez de o produtor Luiz de Galvão bater à porta do colunista do jornal "O Estado de S.Paulo" com um idéia na cabeça. Queria que Millôr desenvolvesse o texto do espetáculo "Brasil Outros 500 - Uma Poop àpera", que tem estréia prevista para o dia 20 de abril, no Teatro Municipal de São Paulo. Trata-se de (mais) uma homenagem ao aniversário de cinco séculos do Descobrimento.
"Nessa época de comemoração, dificilmente um projeto escaparia da fatalidade desse tema", afirma o escritor, que assinou o texto com o professor e ex-governador do Distrito Federal, Cristóvam Buarque, responsável pela parte histórica e documental do roteiro. Combinação eclética - "Brasil Outros 500" é uma superprodução musical de R$ 1,4 milhão que vai combinar o erudito, cenários e figurinos pop, elementos da música incidental, a melodia orquestral, retroprojeções, pirotecnica fria e um elenco de 40 cantores/atores para narrar episódios que marcaram a História de Brasil e Portugal. Por trás de tudo isso, uma ficha técnica respeitável: direção de Antônio Abujamra, coordenação musical e regência de Júlio Medaglia, programação visual de Ziraldo, cenografia de Marcelo Oka e trilha incidental e música original de Toquinho, Wagner Tiso e Paulo César Pinheiro.
Num mesmo palco, estarão reunidas a Orquestra Sinfonia da Rádio e TV Cultura - emissora que é co-produtora do evento e vai transmitir a ópera - e uma banda pop com 89 músicos, além de 22 bailarinos do Balé da Cidade. O espetáculo será apresentado ainda no Rio e no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. "A idéia era fazer um espetáculo de humor, mas não uma coisa escrachada, por isso pensei no Millôr", conta Galvão. "Sou seu grande admirador, o considero acima do bem e do mal".
Millôr diz que não teve tempo para pensar direito quando se viu diante de um projeto dessa dimensão. Lembra-se que Galvão apareceu com um gigantesco entusiasmo e fez o convite. Ficou contagiado e topou na hora o desafio. Esse entusiasmo é importante para o produtor: "Tem de ser como era o Humphrey Bogart com relação ao uísque: sempre duas doses acima do normal", brinca Millôr. Críticas - O humor mordaz e o ceticismo desse intelectual que se considera apenas "um bom profissional" está em cada linha de "Brasil Outros 500". Por isso, um conselho para quem for assistir ao espetáculo: esqueça tudo o que já foi dito e escrito sobre a história oficial brasileira. Cada cena da ópera terá críticas corrosivas à chegada dos portugueses, ao reinado de d. Pedro I, ao período da escravidão, e à Tiradentes, só para citar alguns exemplos. "Nada é mais falso do que a verdade estabelecida", escreveu Millôr num de seus incomparáveis aforismos.
Segundo Millôr, dois personagens servirão de fio condutor da história. Um é o Sonhador, que acredita na grandeza da conquista e nos benefícios do desembarque dos portugueses. Outro é o cético Tomé, filho daquele outro que precisava ver para crer. "Esse diz que vê e continua não acreditando", explica Millôr. Em determinada cena, conta o autor, Tomé assiste ao célebre grito de independência ou morte de d. Pedro I e, realista, questiona: "Não seria melhor botar o galho dentro e aproveitar a vida?"
Ex-presidentes também serão lembrados sem dó nem piedade na "poop" ópera de Millôr - a propósito, poop é a abreviação de "Palavra, Olhar, Ouvido e Popular". Getúlio Vargas e José Sarney estão entre eles. O autor subverte a carta de despedida de Vargas ("Deixo a vida para entrar a história") e cria uma fictícia frase de Sarney ao deixar a Presidência: "Deixo a história para cair na vida". Mas o tom do espetáculo não será totalmente crítico. "Fiz uma bruta esculhambação, mas no fim há sempre uma boa solução filosófica, uma esperança", tranquiliza Millôr. Ele dá um exemplo citando um trecho que finaliza uma cena: "Olha, o negócio é otimismo, não há por que ser pessimista; se a astrologia nasceu da ignorância dos homens diante dos astros (...), por que o Brasil não pode tornar-se um grande País depois de FHC?" Desafios - Para qualquer outra pessoa, reunir num único palco personagens que fizeram meio milênio de história seria, no mínimo, um desafio à coerência. Para Millôr, nada mais é do que mais uma de suas (re)criações a partir do caos. Ele conta que escreveu o texto a partir do tempo de cada cena. "Sem modéstia, para outra pessoa poderia ser complicado", afirma Millôr. Ele concorda que o limite de tempo serviu para represar a imensa torrente criativa de sua mente. "Solto, tenho 10 mil idéias ao mesmo tempo".
A idéia é que na ópera, que deve ter um hora e meia de duração, cada cena acrescente e complemente a seguinte. "Mas aí vai depender da direção e da capacidade dos atores", esquiva-se Millôr, que garante que não teve problema em assinar o texto com Cristóvam Buarque. "Fiz questão de assinar junto, da mesma forma que fiz com outros trabalhos; mas lógico que algumas coisas que ele havia proposto foram mudadas". Tais mudanças deram-se em virtude da proposta do espetáculo.
Ao contrário de outras produções em andamento no País, "Brasil Outros 500" não pretende cumprir um papel didático. "O texto dá uma idéia vaga do que seja o Descobrimento", esclarece Millôr. O que vai dominar o texto é mesmo a agudeza humorística do escritor. Afinal, é isso o que todos sempre esperam dele. "Sofro do contrário dos outros, querem que a ironia prevaleça". Uma da marcas registradas das genialidade de Millôr também deve fazer parte da cenografia do espetáculo.
Alguns de seus desenhos - que serão projetados no palco - servirão de assinatura do autor. "Vão ser desenhos em tamanho grande, não quis uma coisa pequena porque não vale a pena", antecipa. Apesar da bagunça com a cronologia que fará na ópera, Millôr não quer ridicularizar as comemorações do Descobrimento. Nem concorda com a opinião de alguns críticos que as consideram hipócritas.
"Acho que, de certa maneira, pela primeira vez a idéia do Descobrimento está sendo contestada", analisa. "Mas a ópera não é um trabalho de contestação, nem vai glorificar essa contestação, pois tem muita sacanagem". Espetáculo - Ao escrever "Brasil Outros 500", Millôr acrescenta um novo espetáculo aos aproximadamente 120 que já fez
entre originais, adaptações e traduções. São dele as melhores traduções de Shakespeare já escritas no País. Como dramaturgo, levou para os palcos a peça "É...", interpretada pela amiga Fernanda Montenegro durante 12 anos.
Como jornalista, trabalhou em alguns dos maiores jornais e revistas brasileiras. No saudoso "Pasquim", travou, ao lado de gente como Ivan Lessa, Jaguar e Paulo Francis, uma batalha contra o poder munido apenas de inteligência e ironia ("Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados", definiu outrora"). Millôr no cinema - Depois de alguns flertes, o cinema está a um passo de cooptar Millôr. É possível que Walter Salles, diretor de "Central do Brasil", transforme em filme o roteiro de "Últimos Diálogos". Depois de dizer, num momento de desilusão, que o texto jamais seria filmado, os dois voltaram a conversar no ano passado. "Achei que ele nunca mais voltaria a falar disso, que falava comigo por uma questão de desincumbência", admite Millôr.
Tudo começou quando Salles levou a Millôr uma história sobre a volta de uma pianista à terra natal, Minas Gerais. O escritor praticamente recriou o roteiro. Depois de terminar, Millôr disse ao diretor que, se ele quisesse, poderia fazer alguns cortes no texto final. "Sugeri algumas mudanças, mas ele não aceitou nenhuma; parece que quer do jeito que está", conta, dando risadas. Ele pretende fazer um filme "que não seja videoclipado, com as pessoas dizendo as coisas sem ser cortadas".
Com Millôr é assim mesmo: o ontem nunca será igual a hoje. E o amanhã será diferente? "Aí, são outros quinhentos", arremata, parafraseando a si mesmo.