O disco “Secos & Molhados” (1973), da banda homônima, é um dos acontecimentos que mudaram para sempre a música brasileira. Unindo poesias de autores como Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira e João Apolinário, o álbum explodiu e caiu no gosto dos brasileiros, com uma vendagem superior a 1 milhão de cópias.

A banda, idealizada por João Ricardo, dá seus primeiros passos ainda em 1971; mas é em 1973, com a chegada de Ney Matogrosso e Gerson Conrad, que a química única entre os três trouxe resultados imprevisíveis - como o precoce fim da formação clássica logo no ano seguinte.

E o álbum de estreia tem clássicos imortais como “Sangue Latino”, “O Vira”, “Primavera nos Dentes”, “El Rey”, “Assim Assado” e “Rosa de Hiroshima”. Muito heterogêneas, as canções circulam pelo rock, pop, MPB e música folclórica portuguesa, influência mais do que evidente da origem lusitana de Ricardo e seu pai, João Apolinário.

Mas, para além do talento expresso no trabalho em estúdio, o grupo ganhou corpo nos palcos, sobretudo com a presença de Ney Matogrosso, uma figura que por si só enfrentava a caretice e o conservadorismo do Brasil afligido pela ditadura militar.

O jornalista e professor da UEL (Universidade Estadual de Londrina) Silvio Demétrio lembra que, quando criança, ainda em Apucarana, vivenciou o sucesso da banda - que chegou a se apresentar no programa Fantástico, da Rede Globo.

“Os caras estavam em outro patamar para a época. Estavam dialogando com o que acontecia lá fora. Até porque o João Ricardo veio de Portugal e trouxe uma série de referências, como os instrumentos acústicos e a mistura com o elétrico”, lembra Demétrio, que cita a teatralidade no palco como outro aspecto importante.

Mais do que isso, o professor vê que Secos & Molhados teve o mérito de ser uma linha transgressora que atravessou a cultura de massa. E cada canção marcada pelo falsete de Matogrosso pôde contribuir para que as pessoas tentassem ser um pouco mais tolerantes - com a liberdade alheia, por exemplo.

“E agora, 50 anos depois, você vê que é um disco que sobreviveu de uma maneira muito gloriosa, ele sobreviveu inteiro. Todas as faixas são maravilhosas”, aponta. “É um disco fundamental, pela forma e pelo conteúdo.”

Silvio Demétrio, jornalista e professor universitário: "50 anos depois, o disco sobrevive de uma maneira gloriosa, todas as faixas são maravilhosas"
Silvio Demétrio, jornalista e professor universitário: "50 anos depois, o disco sobrevive de uma maneira gloriosa, todas as faixas são maravilhosas" | Foto: Douglas Kuspiosz/ Divulgação

‘RESSONÂNCIA SOCIAL’

Para o professor Alexandre Fiuza, o impacto do disco é muito particular porque estabeleceu um diálogo com o período. É importante lembrar que em 1973 o Brasil estava no auge da repressão da ditadura militar sob governo do presidente Emílio Garrastazu Médici.

“Era um disco político, mas não dentro da política tradicional, do discurso engajado. Era a política em um âmbito dos costumes, de colocar as coisas um pouco ao avesso”, acredita Fiuza. O mérito da banda foi enfrentar a moralidade e a dureza dos “anos de chumbo”.

“O discurso político estava muito cifrado, mas no aspecto comportamental eles foram muito importantes. Como o Ney Matogrosso continuou sendo”, acrescenta.

Hoje professor de História da UEL (Universidade Estadual de Londrina), Fiuza foi coordenador do 1° Congresso Internacional de Estudos do Rock, em 2013, evento realizado na Unioeste (Universidade Estadual do Oeste) que, em alusão aos 40 anos da banda, prestou homenagens

ao Secos & Molhados. Um dos convidados foi justamente João Ricardo, que abordou a trajetória do trio.

“O fenômeno [da banda] está na criação, na ideia do que foi gestado pelo João Ricardo. Mas essa semente só tinha como pegar com o Ney Matogrosso”, apontando uma “bricolagem” que uniu gêneros musicais diferentes, como o rock e a música portuguesa.

Essa influência da música lusitana é um mérito de Ricardo, afirma Fiuza, uma vez que o compositor conseguiu criar a partir de um universo poético clássico, mas imprimindo uma contemporaneidade que deu potência às músicas. “Ela consegue não ser datada, curiosamente com arranjos e possibilidades técnicas simples. Não é uma gravação sofisticada. Ainda assim, há muita qualidade dos músicos”, ressalta.

CABEÇAS CORTADAS

Embora seu maior mérito seja justamente a junção poética e musical que bateu de frente com o período ditatorial e caiu no gosto popular, o aspecto plástico do disco não fica atrás.

A capa que traz as cabeças de Ney Matogrosso, João Ricardo, Gerson Conrad e do baterista Marcelo Frias em bandejas é uma das mais marcantes da música brasileira. A foto foi feita pelo fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues, do jornal carioca Última Hora, e dialoga com a vontade transgressora da banda.

“Estávamos oferecendo nossas cabeças. As caras maquiadas eram para não nos reconhecerem. Era agressiva. Nós éramos agressivos. Coloque-se no meu papel, num país machista, em plena ditadura. Era agressivo por tática. Senão seriam comigo”, disse Ney Matogrosso em 2001, em entrevista à Folha de S. Paulo.

Fato é que as cabeças dos músicos integram o imaginário da música brasileira e contribuíram também para a popularidade do disco. “A capa é muito legal, ainda mais para o contexto de capa da época. Eu lembro que, quando criança, era uma das que eu mais gostava”, conta Demétrio.

Segundo Fiuza, a imagem está também em consonância com o período. “O disco tem um papel importante como objeto plástico, com a capa impactante com as cabeças cortadas no auge da ditadura. Um trabalho feito em meio a um turbilhão."

No palco com João Ricardo, Gerson Conrad e o baterista  Marcelo Frias, Ney Matogrosso  enfrentava a caretice e o conservadorismo do Brasil afligido pela ditadura militar
No palco com João Ricardo, Gerson Conrad e o baterista Marcelo Frias, Ney Matogrosso enfrentava a caretice e o conservadorismo do Brasil afligido pela ditadura militar | Foto: Acervo UH/ Folhapress

50 ANOS DEPOIS

A formação com Ricardo, Matogrosso e Conrad ainda produziu mais um álbum, o “Secos e Molhados II” (1974). Com uma pegada semelhante, o disco trouxe faixas como “Tercer Mundo” e “Flores Astrais”, que anos mais tarde seria regravada pela banda RPM.

Mas no mesmo ano a clássica - e imortal - formação do Secos & Molhados terminava. Fiuza lembra que o rompimento do trio é discutido até hoje, mas que os músicos, que eram jovens à época, fizeram muito pelas condições e idade que tinham: "Isso fica marcado na história”.