Ainda vejo esses lugares. São cenas corriqueiras de vendedoras e garçons equilibrando pratos ou enchendo meus olhos com miçangas e novelos. Estou falando de lugares que marcaram época em Londrina e que deixaram de existir durante a pandemia.

Havia o restaurante Dá Licença, na av. Paraná, o qual eu chamava de Dá Licencinha. Era o menor dos irmãos robustos que ainda existem da cidade. Para mim, aquele aperto familiar do Dá Licencinha, cujos bancos e mesas de madeira lembravam os de um vagão de trem, está vivo na memória, com a passagem dos pratos no corredor estreito, numa intimidade que só existe na casa da gente. O cheirinho de bife na chapa, do feijão de caldo grosso, os filetes de polenta frita e a maionese indispensável não se apagam. O paladar e o olfato guardam grandes registros. O restaurante no coração de Londrina foi um dos primeiros ao qual levamos nossos filhos pequenos. Eles se sentavam ali para a melhor refeição do mundo. Cozinha com atmosfera de casa de vó, pimenta e farinha na mesa, e o copo de guaraná enchendo os olhos de brilhos dourados.

Esses dias passei por lá e os sabores acordam quando me aproximo da porta hoje fechada. Fico pensando no barulho de pratos e copos, ruídos que estiveram ali por décadas, juntamente com a presença eventual e sempre simpática do seu Ênio Sehn, criador do tempero tão brasileiro e tão londrinense que mora na alma da gente e na de seus restaurantes. Me despeço e vou para outra parte do centro.

Estou diante do restaurante Rodeio, aquele que era o único que encontravámos aberto nas noitadas. Era infalível, saíamos de um espetáculo no Teatro Ouro Verde para comer pizza no Rodeio, saia com os filhos num domingo à noite e aquele estrogonofe único quebrava a monotonia do fim de semana como um prêmio cremoso. E havia seu Nelson, o garçom eterno de Londrina, com sua gravata borboleta e o sorriso aberto para sugerir o filé do dia. Se era essa a escolha, que festa! Pratos generosos de bifes quentinhos com salada e batatas fritas, que chegavam depois das entradas de pãezinhos com molhos ou bolinhas de manteiga que a gente equilibrava, aos pedaços, na pontinha das facas, entre goles de cerveja. O Rodeio faz falta e sem ele o centro nunca mais foi o mesmo.

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Caminho numa quarta-feira de manhã para ver a rua Sergipe. Há alguns trechos desolados com lojas fechadas e espaços à espera de inquilinos, principalmente no alto da rua, quase na confluência da av. Higienópolis. São estabelecimentos fechados, depois da pandemia do século. Pedaços importantes de Londrina que se foram. Famílias e memórias, lojas e lembranças, suvenirs do tempo que revejo em flashes.

Um choque de memória e saudade acontece quando dou com as portas fechadas de A Tricolândia. A loja de armarinhos, onde comprei fitas, miçangas, elásticos, tesouras e botões, desapareceu como a cesta de costuras da minha mãe. Os fios da memória doem, como não? E se entrelaçam em carretéis e novelos, lãs de todas as cores que se transformaram em blusas e cachecóis. Para onde foram os pontos cheios e em cruz? Os panôs que as mulheres da cidade bordaram, os passa-fitas das roupinhas de bebê? Essas são as memórias que ainda habitam o coração da Tricolândia, um oásis de fios e tintas nas quais me lambuzei quando tentava pintar telas à óleo ou com acrìlica e acabava me conformando com guaches menos trabalhosos.

Há sempre um pouco de arte na memória e muita cultura em cada mesa de bar ou restaurante. Um álbum de vivências, namoros e experiências no tecido da cidade estampado com tudo o que não existe mais, mas que não morre nem mesmo na pandemia.

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