Carlos Eduardo Lourenço Jorge
De Londrina
Especial para a Folha 2
É industrialmente cíclico. De tempos em tempos, o cinema despeja nas telas do planeta quantidades generosas e arrepiantes de terror. O gênero, desde sempre, é um dos mais estimados do grande público. E por quais razões este público se sente tão envolvido e tão gratificado pelas ficções terroríficas?
É psicofisiologicamente básico. O espectador médio se sente atraído pelos estímulos emocionais insólitos e intensos, bem mais raros na rotina da vida real. Eles proporcionam ao sistema nervoso um choque que poderíamos chamar de saudável, uma estimulante descarga de adrenalina com direito à dilatação arterial, aceleração da circulação e da respiração. E há o território freudianamente fértil dos sonhos.
No sonho, tanto como no cinema, o insólito, o ilógico e a violação de leis naturais resultam perfeitamente aceitáveis, muito em razão da flexibilidade espacio-temporal proporcinada pelos movimentos de câmera e pela montagem. Ninguém questiona a aberração zoológica chamada Godzilla, ou a afiada habitualidade de Freddy Kruger na hora do pesadelo. E somente ao final do filme – como ao final dos sonhos, vale dizer, ao acordar – é que o espectador estará em condições de refletir criticamente, de racionalizar sua experiência.
É eroticamente sadomasoquista. Este quadro de sensações é muito semelhante em seus efeitos fisiológicos àquilo que sentimos durante uma performance erótica. É importante assinalar que a tensão emocional do estímulo, durante a ficção terrorífica, culmina com um intenso alívio final que pode, certamente, ser comparado em muito aspectos ao orgasmo.
Esta estimulação fisiológica positiva, gerada por descargas dos neurônios como resposta ao estímulo do cruel, do bizarro e do suspense, somente é possível porque o espectador permanece a salvo em sua poltrona, está fisicamente à margem da ameaça exibida na tela. E se a agressividade do terror ficcional é excessiva para seus níveis de tolerância, ele pode desconectar-se fechando os olhos e tapando os ouvidos, ou mesmo saindo da sala. Assim está psicologicamente ileso e, por isso, pode manter em estado de alerta uma espécie de sadomasoquismo voyer.
Tudo dentro de limites de autocontrole e do socialmente tolerável. Exemplares, neste sentido, os dois ‘‘Pânico’’, os dois ‘‘Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado’’ e ‘‘A Bruxa de Blair’’
Aqui, uma parada obrigatória para breve reflexão sobre sensacionalismo na indústria cultural capitalista. A obrigatoridade da competição comercial e do benefício econômico coloca o sensacionalismo em suas diversas formas – espetáculo, sexo, violência, mistério, suspense, atores e atrizes famosos – como o guia do sistema de produção de mensagens para o entretenimento coletivo.
No caso corrente do cinema de terror, o motivo sensacionalista é precisamente, exatamente a crueldade. Isto explica que a progressiva competição comercial no mercado tenha se traduzido numa crescente escalada da crueldade no gênero nas ultimas duas décadas, as décadas das muitas ‘‘sextas-feiras 13’’, das incontáveis horas do pesadelo, dos inúmeros halloweens, do pânico disseminado pelas milhares de bilheterias..
Após os veneráveis, saudáveis monstros de outras eras, vítimas de tabus censores e autocensores, os novos horrores do cinema contemporâneo passaram a mostrar uma face mais pérfida e inquietante. Para sobreviver num momento assombrado não mais pela televisão, mas pelo videocassete, o cinema buscou adequar-se aos novos tempos.
Para conquistar novas platéias, incentivou-se o terror teen, sanguinolento, recheado de modismos ditados pelas novas gerações. Não mais sugerido no lúgubre e poético castelo do conde, na masmorra da criatura, no musgo do pântano distante e enevoado, na floresta do homem-lobo. O horror agora é explícito no colégio, no campus, no baile de formatura, no camping. No dia-a-dia mais banal, corriqueiro. Nas colônias de férias, no documentário fake sobre alunos de cinema. E no retorno do diabo, no meio do redemoinho saído da usina dos efeitos especiais. Novos tempos, novos padrões de comportamento, nova moralidade.
Mas ainda há hora e lugar para artefatos inteligentes que jogam não com a libido ensanguentada e em frangalhos do espectador voyer, mas com um sentido extra da platéia, aquele sexto que costuma fazer a diferença entre o terror explicitamente consumista e aquele que tem na inteligencia – cada vez mais rarefeita – a sua marca de excepcionalidade.
Nesta safra maldita de ultima geração, ‘‘O Sexto Sentido’’ faz a diferença. Não por suas medidas de comedimento, o medo aqui sob severa vigilância de um roteiro elaborado com austeridade e rigor. Nem por sua bandeira discretamente desfraldada com didático equilíbrio e sensibilidade em prol da causa kardecista. O medo latente em ‘‘O Sexto Sentido’’ passa para a platéia sem sustos de poltergeists de laboratório ‘‘light and magic’’, mas com a competência atmosférica da sugestão e do clima.
É uma ghost story, mas narrada com elegância e proporção por M. Night Shyamalan. E mais: o medo diáfano não se resume a almas penadas em busca de paz e sossego. O que ‘‘Sexto Sentido’’ discute nas entrelinhas, e com rara perspicácia, é o dano causado pela ausência da figura paterna, o sentido de união familiar livre de ranços moralizantes, a competência profissional, a amizade livre, desinteressada e respeitosa entre um adulto e uma criança e o miraculoso, maravilhoso e encantado e regenerador universo infantil, mesmo quando fragilizado e vulnerável.