São Paulo, 29 (AE) - Há um momento em que "Mário", novo filme de Hermano Penna que estréia amanhã (30) na capital paulista, se aproxima de "Coração das Trevas", de Joseph Conrad. É quando o herói, ou anti-herói, se vai internando pela selva e chega a uma região onde o horror reina absoluto. É por esse contato com o mal, na forma da morte, do assassinato, da violência, que o médico Mário, personagem-título vivido por Jairo Mattos, poderá dar outro significado à sua vida. Arquivar os sonhos, esquecer as ilusões e, quem sabe, adquirir uma nova consciência crítica da realidade.
Mas esse é o ponto terminal de uma saga que começa na cidade. Mário é um ser humano urbano, que vive como quase todos os habitantes de uma cidade moderna como São Paulo: mal, muito mal. Enfrenta um cotidiano estressante, que só se mantém porque as pessoas estão absolutamente convencidas de que não existe alternativa a ele. Mora com a mulher, Lúcia, uma perua tão oca quanto bela, intepretada por Vera Zimmermann. Finalmente, no emprego (ou em um dos seus empregos) percebe que a profissão que escolheu se transformou em reles caça-níqueis. Quem lucra com ela são os donos de clínicas e hospitais. Pacientes são tratados como objetos pouco valiosos e, no vale-tudo da competição econômica, servem apenas como fontes possíveis de lucro. Inferno - Ou seja, como Mário ainda não desistiu da existência ou afundou no conformismo, encontra-se preparadíssimo para dar o pulo do gato e cair fora. Põe o dedo ao acaso sobre um mapa e encontra um local perdido do mundo, Juína, divisa entre Mato Grosso e Pará, já no domínio da Amazônia legal. Como não tem para onde ir, decide ir para lá mesmo. Tanto faz, desde que seja para longe do inferno onde vive. Mário vai em busca do paraíso, mas o que encontra é bem diferente do que imaginara. Se a cidade não passa, na expressão batida, de uma selva de pedra, a selva, propriamente dita, não lhe parece muito melhor.
Logo ele descobre as pessoas se entredevorando pela posse da terra, vê o meio ambiente ser devastado, os mais fracos (em geral os índios) sendo dizimados. O jogo bruto pela vida, que ele conhecera em São Paulo, reproduz-se, por outros meios, na Amazônia. Como se cidade e campo fossem os dois lados de uma mesma moeda: a virulenta competição entre as pessoas, a rinha de galos loucos em que se transformou a existência humana. Trata-se
portanto, de um filme de aprendizado. Mário vai ao fundo do poço para aprender que o mal não está na cidade ou no campo, mas deve ser buscado em algum lugar qualquer da organização social humana.
No entanto, não se engane. Hermano Penna não faz uma obra de tese, didaticamente voltada para o diagnóstico dos problemas e sua possível solução. É bem mais oblíquo. Contorna as contradições, as expõe, revolve os impasses, sem apresentar nenhum sentido de conciliação entre eles. De certa maneira, "Mário" é um filme bastante antenado com a situação das esquerdas neste momento histórico. Conhecem muito bem os males do capitalismo triunfante, globalizado, mas não conseguem propor uma alternativa coerente para o que existe depois do fim do socialismo real. Ambiguidade - De certo modo, Penna nunca se sentiu sensibilizado pela linha mais didática do cinema dito engajado. Seu título mais conhecido, o excelente "Sargento Getúlio", foi feito exatamente nos anos da virada entre o governo militar e o civil, entre 1978 e 1983. Adaptado do romance de João Ubaldo Ribeiro, foi tido, por parte da crítica, como alegoria quase direta da truculência dos tempos da ditadura.
Getúlio, genialmente interpretado por Lima Duarte, deve conduzir um preso de um lugar para outro. Não hesita em usar todo tipo de violência e também a tortura para cumprir a missão quer recebeu de um dos chefões da área. No entanto, Penna conduz a narrativa em tom ambíguo. Leva a platéia ora a odiar ora a amar o personagem. Contribui muito para a ambivalência o talento interpretativo de Lima Duarte, mas a opção pela ambiguidade é muito perceptível no estilo de direção. Como se Penna quisesse dizer que a violência em estado bruto não nasce tanto da oposição entre figuras circunstanciais de uma época (o militar e seu prisioneiro), mas de motivos bem mais profundos, relacionados à estrutura e aos materiais de construção da nação. Profundidade - Esse cuidado com a profundidade da análise está também presente em "Mário". Um filme de difícil realização, que custou vários anos de trabalho ao diretor. Quando bolou o projeto, já sabia o que iria ter pela frente. Ninguém filma impunemente na Amazônia, como logo descobriu. Numa primeira fase de feitura, iniciada em 1995, filmou interiores, em cenários. Foi a parte fácil. Em seguida, teve de encarar o desafio amazônico.
Juína fica a 800 quilômetros de Cuiabá. São 500 quilômetros de estrada de terra. Quando chove ninguém passa, gente, veículo ou animal. E lá chove quase sempre. Para chegar ao local, Hermano Penna e sua equipe ficaram atolados várias vezes. Tiveram de pedir ajuda aos donos de uma máquina poderosa, que devasta tudo à sua volta, mas tira qualquer veículo da lama. Enfrentou várias peripécias como essas e mais o calor, os mosquitos e tudo o que costuma vir associado à precariedade do sertão brasileiro.
Mas, pior do que as chuvas, mosquitos e atoleiros amazônicos foi a falta de verbas, que fez com que o filme demorasse quatro anos para ser terminado, das primeiras filmagens à cópia final. Em alguns momentos, revela essas dificuldades de produção. Com uma idéia inicial muito boa, e tratamento adequado para uma trama nada maniqueísta, peca aqui e ali por certa falta de impacto. Como se algumas das cenas não tivessem recebido tratamento dramático conveniente.
Essa irregularidade não é incomum em projetos que se arrastam durante muito tempo. Costuma faltar a eles a homogeneidade de filmes rodados dentro do cronograma e com recursos compatíveis à pretensão inicial. Georges Simenon falava com frequência da importância do trabalho ficcional compactado. Idealizava seus romances na cabeça, depois se isolava durante alguns dias ou semanas e escrevia compulsivamente, capítulo após capítulo, até chegar ao ponto final. Se não fizesse assim, dizia
a trama desandava, como desandam algumas maioneses.
Não é o caso de "Mário", mas a arquitetura geral do filme se ressente de uma melhor administração das tensões entre personagens. Hermano Penna não trabalha com um herói catártico, o que lhe facilitaria a vida, pois, no final, tudo seria redenção ou alívio, de uma forma ou de outra. Não. A ambição do artista é bem maior. Trata-se de criar um tipo irresoluto, nem bom nem mau, que não encontra solução para seu inferno pessoal (ou político) em lugar nenhum. Essa condição, por assim dizer, descentrada, exige mais - tanto do realizador que a concebe quanto do ator que a interpreta.
Como é obra de maturidade, apresenta também sua condição de balanço. De vida, político e estético. Quer dizer, encontra-se, como projeto, na linha de confluência de uma série de requisitos, todos eles exigentes, complicados, às vezes inconciliáveis. Se não consegue cumprir inteiramente todo esse projeto, "Mário" revela-se amplamente um testemunho fidedigno - senão das contradições de uma época complexa e sem horizontes visíveis, pelo menos dos impasses do realizador e de sua geração.