O escritor russo Liev Tolstói (1828 – 1910) dizia que todas as famílias felizes se parecem, mas as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. Já o escritor norte-americano William Faulkner (1897 – 1962) dizia que aquilo que a literatura faz no mundo é acender um fósforo no meio da noite escura: “Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor.”

Famílias guardam algum tipo de escuridão nos lugares mais secretos. Nos armários dos quartos. Nas gavetas da cozinha. Nos lustres da sala. Nas caixas do quarto de despejo. William Faulkner faz da chama de um único fósforo um trágico retrato de família em “Absalão, Absalão!”, romance publicado originalmente em 1936 que ganha uma nova edição lançada pela editora Companhia das Letras.

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. | Foto: Carl Van Vechten/ Reprodução

O título da obra remete ao episódio bíblico onde Absalão, filho do rei Davi, se rebela contra o próprio pai e acaba assassinado para desgosto do pai. A tragédia familiar narrada por Faulkner em “Absalão, Absalão!”, traz a história de Thomas Setpen, um sujeito que se empenha em construir uma família com filhos que deem prosseguimento às suas conquistas de riqueza e poder. Mas o que os filhos fazem é exatamente o oposto, arruínam riqueza e poder e acabam matando uns aos outros. Como pano de fundo, o final da Guerra Civil Americana e o final da economia escravagista no sul dos Estados Unidos.

Nas palavras do próprio Faulkner, agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1949, o romance narra a história de um homem que desejava um filho como herdeiro, mas teve filhos que causaram a destruição da família.

A grande riqueza literária de “Absalão, Absalão!” não reside apenas na história narrada, mas como ela é narrada. Ao lado de outra obra de Faulkner, “O Som e a Fúria” (1929), trata-se da obra mais instigante do escritor em matéria de linguagem. E curiosamente um dos personagens de “O Som e A Fúria”, Quentin Compson, também aparece como personagem de “Absalão, Absalão!”.

A narrativa é construída por várias vozes, pessoas que ouviram falar da tragédia da família Setpen. Essas vozes, em vários casos utilizando o fluxo de consciência, procuram reconstituir as lacunas da trágica história com suposições e analogias. As divergências na visão dos acontecimentos ampliam as possibilidades de leitura em múltiplas direções. Como as peças da tragédia familiar são apresentadas quando novos elementos surgem, ou são deduzidos ou relembrados, não há uma ordem cronológica em nenhum ponto da narrativa. O tempo está constantemente sob neblina.

O leitor pode experimentar a sensação de estar no interior de um labirinto narrativo dividindo com os próprios narradores a sensação de caminhar sobre um pântano repleto de buracos, lama, lacunas, incertezas, aranhas e serpentes. A ideia de verdade, seja em fatos ou acontecimentos, simplesmente não existe. Há a possibilidade de leituras de um tempo ilustrado pelo espaço e, principalmente, a construção simbólica de um sentido para a decadência.

As vozes presentes no romance olham para o passado e não procuram encontrar como a decadência familiar acontece, mas como ela é gestada em seu próprio útero. Encarada como maldição, a decadência do império familiar reflete outra maldição maior: a escravidão.

No intrincado labirinto de “Absalão, Absalão!” as histórias familiares, guardadas nos lugares mais secretos, revelam como uma nação é constituída por famílias que guardam a infelicidade nas escuras cavernas do coração.

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. | Foto: Reprodução

SERVIÇO:

“Absalão, Absalão!”

Autor – William Faukner

Tradução – Celso Mauro Paciornik e Julia Romeu

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 400

Quanto – R$ 79.90 e R$ 39,90 (e-book)