Como acontece uma vez por ano, o meteórico Festival Varilux oferece à cinefilia mais ou menos arregimentada em várias cidades brasileiras uma seleção de títulos que reúne aquilo que potencialmente é o 'crème de la crème' da temporada de lançamentos franceses (“puros” ou em processo de co-produção). E como sempre, há pouco o que celebrar de fato: o número de títulos-figuração (ou “perfumaria”) ultrapassa com larga folga aqueles raros de poderosa presença, de incontestável calibre, acima de qualquer suspeita. Como “Making Of”, ainda em exibição nesta terça-feira (21) e “Anatomia de Uma Queda”.

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Um renomado realizador de cinema encurralado luta para se manter fiel à nobre tragédia da história que espera contar – a de uma revolta de trabalhadores na vida real numa fábrica na Provence francesa – enquanto os movediços coprodutores em Paris ameaçam reter o financiamento, a menos que ele enxerte na trama um final feliz. Um jovem aspirante à cineasta tropeça na tarefa de acompanhar o diretor para criar o documentário do título,‘making of’, e se vê testemunha dos mais cruéis caprichos e pressões da indústria. E como complemento, um ator narcisista e pretensioso dá o melhor de si no set e fora dele.

As novidades que o prolífico diretor Cedric Kahn aporta ao tema não trazem visões inéditas ao discurso em torno do metacinema como subgênero sempre celebrado pelo cinema francês. Mas elas funcionam como um relógio de notável precisão: uma comédia social divertida , afetuosa e instigante, sem perder por um momento a capacidade de propor questões complexas sem nunca respondê-las totalmente – é como se o custo e o caos do processo criativo ficassem por conta do espectador.

Há algo nas lentes do cinema, sugere o filme, que consegue ampliar o que há de pior nas pessoas, estejam elas na frente ou atrás delas, das lentes. Com a justaposição de um jovem motivado e desesperado para entrar na indústria cinematográfica, e um diretor mais velho e bem-sucedido, cuja relação intensa com o trabalho custa quase tudo em sua vida, o filme pinta um retrato implacável do cineasta. Se há um elemento autobiográfico na imagem, é presumivelmente um elemento solto; ao contrário do esgotado Simon (Denis Podalydes), Kahn está na feliz posição de ter estreado dois filmes em dois grandes festivais no mesmo ano: “Making Of” segue o bem recebido “Le Procés Goldman”, que abriu a Quinzena dos Realizadores em Cannes no início deste ano. Imagens que direcionam as lentes para o processo de filmagem tendem a ser bem recebidas no circuito de festivais; portanto, novas exibições em mostras parecem prováveis após sua estreia em Veneza, há dois meses.

Dividido, de forma um tanto arbitrária, em capítulos ou ‘atos’, o filme abre com uma sequência de ação propulsora. Brilhante. Um carro passa por um portão de arame e, sob uma chuva torrencial, trabalhadores em fúria chegam ao pátio da fábrica, prontos para enfrentar o pessoal de segurança. A câmera é arremessada, golpeada entre os corpos e os bastões dos guardas. Uma jovem, Oudia, se separa da multidão e sobe por uma janela nos fundos do prédio, abrindo a porta de metal que impede os funcionários de seu antigo local de trabalho. Justamente no momento triunfante, porém, um rapaz com ar idiota com uma câmera de vídeo entra na cena e o diretor grita ‘corta’.

Fica claro que estamos assistindo ao primeiro dia de filmagem do último filme de Simon. E o cinegrafista sem noção é o menor dos problemas que eles estão prestes a enfrentar. Alain (Jonathan Cohen), o ator canastrão que interpreta o inspirador líder sindical, é meio idiota. Ele não está disposto a dividir os holofotes com ninguém, mas parece ter um problema particular com Nadia (Souheila Yacoub), talentosa novata que

interpreta Oudia no filme dentro de um filme. E a hesitação dos financiadores ameaça deixar um rombo considerável no orçamento e um ponto de interrogação sinistro sobre os salários do elenco e da equipe técnica.

A nota irônica de um filme sobre os trabalhadores terem suas próprias práticas laborais duvidosas é apenas uma das contradições que Kahn explora nesta representação nada lisonjeira da figura do cineasta e do seu processo. Há a sensação de que ele vê o impulso criativo como uma força corruptora, de que ser um cineasta requer inevitavelmente uma visão extremamente egoísta das necessidades dos outros. Isto fica claro na recusa de Simon em aceitar que seu casamento há muito negligenciado possa ter acabado.

Como fica óbvio no filme, há de fato algo nas lentes do cinema que consegue ampliar o que há de pior nas pessoas, estejam elas na frente ou atrás delas. Mas isto os que amam mesmo o cinema já sabiam, desde que Truffaut selou para sempre esta paixão cinéfila do cinema pelo cinema na obra prima “La Nuit Américaine”. Aliás, o clássico deveria estar nesta seleção 2023. Está comemorando 50 anos...

* Confira a programação do Festival Varilux no site do evento