Lygia Clark: a artista caminhou por uma 'franja" por ela costurada entre a ciência e a arte
Lygia Clark: a artista caminhou por uma 'franja" por ela costurada entre a ciência e a arte | Foto: Folhapress

Quando se fala na obra de Lygia Clark, a primeira pergunta que aparece é: Qual o sentido de ser dos “Objetos Relacionais”? Assim, começar uma reflexão sobre os seus últimos trabalhos, invertendo a ordem lógica que indica “começar pelo princípio”, significa assinalar o que eu aponto como a proposta mais significativa da artista. Dou a partida, então, para comemorar o centenário de seu nascimento com esta reflexão invertida.

Os “Objetos Relacionais” são criações para proposições psicoterapêuticas, mas que detêm um sentido estético que não aparece explicitamente. A atualização desse sentido para o nosso tempo perpassa pelo esgarçamento que o tecido das artes sofreu no século XX. Neste caso, a artista caminhou por uma “franja”, por ela costurada, entre ciência e arte. Propôs, então, à psicoterapia um campo sensível de experiência estética.

O tratamento terapêutico pelo uso desses objetos no corpo do “paciente” dissolveu também com os limites entre espectador e obra. Assim, o uso de objetos semelhantes faz de cada sujeito um artista no tempo. Então, uma nova pergunta aparece: Como cada objeto desses pode ser considerado uma obra de arte? Essa consideração faz sentido e só aparece no espaço-tempo da experiência, pois, em si, ela não existe. Trata-se de uma relação direta entre os objetos, o corpo do “paciente”, a artista em um determinado instante singular.

Lygia Clark legou seus objetos para Lula Wanderley. Ao mesmo tempo em que este os usou em seus pacientes esquizofrênicos, passou a atuar, desde os anos setenta, na área das artes visuais. A relação de seus trabalhos com o de Lygia Clark não é diretamente explícita. Há uma existência mútua entre eles, algo latente que resulta em um processo de criação artística. Wanderley diz que “toda arte é incompleta, necessitando ser apropriada pelo espectador para completá-la: a arte é escuta.” Assim, o que se escuta desses objetos é um som infinito e que se propaga por cada espectador -receptor, que submete seu corpo a um encantamento sugestivo, em sessões privadas ou coletivas. Além disso, cada um pode criar seus próprios objetos relacionais, sem, no entanto, que esses sejam reconhecidos como obra de arte.

Portanto, se todos somos artistas, cada um, então, que crie seus próprios objetos e compreenda a sua própria vida. Há uma corporeidade afetiva que se manifesta no uso e na criação desses objetos. Wanderley afirma: “A arte tanto fala quanto escuta - é tanto vento quanto concha.” E nos surpreende a cada trecho de sua entrevista: “Lygia Clark levou a escuta da arte a uma radicalidade tal que dissolveu sua identidade de artista e fez ressurgir a radical singularidade do espectador", pontua Wanderley em texto publicado no site do Conselho Regional de Psicologia.

Obs: Lula Wanderley nasceu em Recife e atua nas artes contemporâneas desde os anos de 1970. Colabora com jornais e revistas como artista gráfico e participa de movimentos da poesia visual. Simultaneamente estuda medicina e forma-se pela Universidade Federal de Pernambuco. Em 1977 migra para o Rio de Janeiro onde reside, lá trabalhou com Nise da Silveira e Mario Pedrosa no Museu de Imagens do Inconsciente. Colaborou, também, com Lygia Clark em suas pesquisas sobre arte, corpo e psiquismo. Atualmente, seu interesse tem se voltado para o cinema e o poema em vídeo.

Cláudio Garcia é professor de Artes Visuais na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pesquisador da obra de Lygia Clark.