A admiração e o respeito pelas pessoas podem ser despertados por diferentes qualidades. As conquistas pessoais, as profissionais e até mesmo gestos simples do cotidiano como daquele cidadão na fila que nota a pressa alheia de quem carrega um item nas mãos, e cede a sua vez no caixa.

A ousadia empreendedora, a bondade e também a capacidade daquele que se reinventa e abraça a possibilidade de começar uma nova vida são também motivos de admiração. A recém-lançada biografia "Meus 90 anos", do médico patologista Luis Parellada Ruiz ( organizado por Jan L.L Parellada, Editora Autografia, 142 páginas) é fruto da admiração que amigos, familiares e um sem número de profissionais de diferentes áreas nutrem por ele.

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O curso de sua carreira, o gosto pela vida, o arrojo profissional, a sensibilidade apurada, a discrição, o olhar para a arte e sua evolução cultural são alguns quesitos que o tornam um tanto admirável. Na obra dividida em três partes: Infância e Adolescência; Universidade e Brasil, o médico que é natural de Barcelona, na Espanha, compartilha os seus 90 anos com vivacidade e consegue ampliar as perspectivas do leitor para a graça da vida.

"Jaqueline, minha esposa atual, incentivou-me a escrever as minhas memórias. Primeiro, julguei que não interessariam a ninguém, depois, que poderiam interessar aos meus filhos e quem sabe aos meus netos, por fim, prevaleceu a convicção de que eu deveria mostrar a diferença entre os dois mundos que presenciei, o que interessaria a muita gente. Esses mundos não são a Europa, onde nasci e a América, onde trabalhei, mas sim a era pré-tecnológica e a altamente tecnológica. Dois mundos separados pela Segunda Guerra Mundial, onde tudo mudou", apresenta o autor no prólogo.

"Fiz em cerca de seis meses. A dois dedos," ele conta. E simula como é digitar apenas com os indicadores. Avesso ao lançamento incialmente, hoje o sentimento é outro. A primeira impressão esgotou. "Não fiz para vender e todos quiserem levar um abraço, pegar o autógrafo e foi uma noite calorosa, não cabia mais gente e quando abri os olhos, não havia mais um livro". No registro, faz a dedicatória: "Para Ibelmar, Jan Luiz e Alonso, meus maravilhosos filhos. Para Jaqueline, minha Amada Imortal".

Ainda na apresentação, escreve: "Na véspera da Segunda Guerra Mundial, a penicilina foi arquivada como uma curiosidade em 1937, mas foi desenterrada, ou melhor, desarquivada, para curar soldados feridos para que voltassem às trincheiras. Igualmente os inseticidas foram renascidos , pois combatentes sem piolhos poderiam atirar "confortavelmente" nos inimigos que se coçavam desesperadamente. Mas, principalmente era necessário acabar com os focos de mosquitos, a malária mandava dezenas de combatentes para o hospital, coisa que acontecia desde as mais antigas guerras da história".

O interesse pela História e pelo conhecimento são características do médico que estudou latim, assim como desde menino sabia descrever toda a bacia hidrográfica do Rio Ienissei, que divide a Sibéria em duas partes. "Foi uma infância com muita presença da família e fomos privilegiados na educação".

O pai trabalhava com arquitetura técnica e topografia e a mãe era do lar. "Sempre gostei de ler e se deixasse passava da conta. Quando nossos pais iam ao cinema, nos colocavam na cama para dormir. Mas calculávamos o tempo até o filme acabar e quando faltavam 30 minutos para estarem em casa, apagávamos o abajur. Era essa a transgressão às regras", sorri. "Minha mãe chegava, ia até o quarto e verificava se a lâmpada estava fria", lembra.

Construção modelada pelo médico que teve um pai dedicado à arquitetura
Construção modelada pelo médico que teve um pai dedicado à arquitetura | Foto: Walkiria Vieira

DE REPENTE, 90

Em uma quarta-feira, antes de um compromisso, o autor agenda a entrevista no apartamento em que vive com a esposa, a administradora Jaqueline. Se no senso comum entrevistar uma pessoa com 90 anos exige uma consideração às fragilidades comuns à maturidade e estar diante de uma pessoa recostada em sua poltrona favorita, no jornalismo pode ser diferente e surpreendente.

É ele quem abre a porta. Altivo, bem trajado e disposto, deixa que eu escolha o local para me sentar. A "isca" para a conversa é o lançamento de seu livro, "Meus 90 anos", mas o flerte com a trajetória do autor já dava ânimo à Folha 2 e a editora Célia Musilli vislumbrava um perfil para o fim de semana.

Aos que se admiram diante de sua vitalidade e até duvidam da idade, Ruiz ratifica: "Nasci em 22 de abril de 1932, mas meus pais me registraram no dia 23, quando se comemora o Dia de São Jorge, Padroeiro de Barcelona. Talvez consideraram que eu teria alguma vantagem", brinca.

Serenamente, considera que está bem de saúde graças a seus hábitos e sugere: "Ter uma vida regrada, respeitar o organismo ao trabalhar de dia, dormir à noite, beber vinho em quantidade moderada e ter sempre por perto um grande amor".

A escolha pela medicina, além da vocação, guarda uma relação afetiva com o avô paterno. "Meu avô acreditava que o filho mais velho seria médico, mas este, que era meu pai, desmaiava ao ver sangue e no primeiro ano de medicina saía das aulas chorando", narra.

"E dedicou-se à arquitetura técnica de topografias. Minha mãe sempre foi do lar e eu comecei a fazer medicina em 1950, dediquei-me ao serviço militar e quando terminei o curso, todos viemos para o Brasil, pois o meu pai tinha muito medo do que seria a próxima guerra.

Acerca do trabalho de um patologista, considera que fez a escolha certa. Sobre a fama de sua dedicação, reflete: "Atender não tem hora para um médico, o paciente não escolhe a hora que quer ficar doente." De seu ponto de vista, o papel de um médico é dar uma esperança ao paciente. "Dar a ele ânimo, dar conforto, expectativas e conforto".

LABORATÓRIO E ARTE

Nos anos em que esteve à frente da Lab Imagem, em Londrina, o médico patologista Luis Parellada Ruiz fez do momento de espera pelo atendimento médico, um espaço mais aconchegante, humanizado e, a olhos mais atentos, um encontro com a arte, ainda que o motivo fosse a realização de exames.

As cores das paredes, a organização de cada espaço, a assepsia, o uniforme de cada profissional, o tratamento humanizado se somavam a um ambiente integrado ao conceito cuidadoso com cada paciente. Onde se dedicou profissionalmente, o médico também dividiu com todos sua essência: o prazer pela gastronomia, pela arquitetura, música, a fotografia, o cinema e a literatura.

No curso de sua atuação, criou no ano de 2002 uma programação cultural que incluía um Espaço Cultural com exposições fotográficas, quadros de aquarela e também arte francesa na cafeteria. Uma playlist de música ambiente foi programada para o mês todo.

Diante do folder impresso de março de 2012, é possível relembrar o que se ouvia às segundas-feiras: Lá estão Luís Melodia, Tigrão, Quarteto em CY , Tropicália e Maria Bethania em uma reverência à MPB. Já nos sábados daquele mês, os pacientes tinham a oportunidade de ouvir clássicos do cinema, músicas ganhadoras de Oscar, incluindo Ennio Morricone, Orquestra Sabor Latino.

O folheto cultural ainda detalhava todas as atrações do Museu de Arte de Londrina durante o mês todo, do Museu Histórico Carlos Weiss, da Academia de Letras, Ciências e Artes de Londrina e o Ciclo de Cinema Aeroporto, na ocasião no auditório Orlando Boni, no aeroporto Governador José Richa e também o Programa de Pós-graduação em Cinema e Documentário da Faculdade Pitágoras. Uma das atrações à época era "O Homem que Engarrafava Nuvens" (Brasil, 2008), direção de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, no Cine Comtour.

A gastronomia, capítulo à parte, tinha também uma agenda fixa. As aulas eram realizadas todos os sábados na Laboratório Lab Imagem. Os meses com cinco sábados eram os mais desejados, haja vista como o laboratório de culinária atraia. Espaghetti Alla Norma, Paella Marinheira, Fricasssê de Frango, Escondidinho de Picanha Defumada com Purê de Abóbora Cabotiá e Ossobuco com Polenta estão entre as receitas..

De tão concorridas, as aulas chegaram a somar lista de espera de até um ano. E para a satisfação de todos, um livro de receitas passou a coroar os encontros, trazendo pratos de diferentes culturas.

No livro de 2012, que celebra os 10 anos de atividades da programação cultural do Lab Imagem, Parellada apresenta duas receitas na edição, uma Tortilha espanhola e uma de Panallets, doces típicos da Catalunha, consumidos em 1º de novembro, comemoração do Dia de Todos os Santos.

APOSENTADO NA ATIVA

Agora aposentado, o médico tem tempo livre para se dedicar a um de seus hobbies: 'recortable', do espanhol, recortáveis. "É muito prazeroso, eu não consigo ficar sem fazer nada e quem sabe esta não possa a ser até uma atividade comercial?".

"Dois anos atrás eu me desliguei do laboratório, bem maduro", sorri. "E posso fazer outras atividades que gosto: ler, ouvir música e viajar."

Sobre a mesa de jantar, a maquete do Museu de Londrina. São 60 peças de papel, todas recortadas e coladas uma a uma. "Ele fotografa o local e com a planta, cria as peças. Se antes eram meses para a apresentação final, agora considera que em um mês conclua", explica a esposa Jaqueline.

A história de um lugar motiva o casal, além do conhecimento de outras culturas: "As carreteiras na Espanha são exemplo". Refere-se às estradas daquele país. "Os acessos entre um estado têm estradas seguras e sem pedágios, o que favorece bastante. De Barcelona a Madri, o trem bala leva 2h15 minutos", observa. "Isso é algo que serve de lição a todos os países."

A esposa diz que nas viagens a alta performance do marido é algo que a motiva. "Eu não mergulharia em uma caverna, mas vendo a disposição dele, passei a desenvolver também esse lado e acompanhar tudo", divide. "Rapel, saltar de paraquedas", enumera a esposa. "Aventura é comigo", diz o admirável aposentado.

Maquete do Museu de Arte de Londrina: papel moldado por Luis Parellada Ruiz com habilidade
Maquete do Museu de Arte de Londrina: papel moldado por Luis Parellada Ruiz com habilidade | Foto: Walkiria Vieira

UMA FLOR, UM POEMA E UM PASTEL

Premiado internacionalmente por suas trovas, ele apresenta uma composição poética: "Descansa mulher, doçura /que eu velarei teu sono /Amando-te com loucura/ Mas sem tornar-me teu dono". Quando pergunto se a experiência de "Meus 90 anos" foi boa a ponto de inspirar uma nova obra, Jaqueline entrega: "Já tem. Só falta editar". Trata-se de um livro de poemas. "Nos últimos 15 anos, ele criou o hábito de, a cada ida à feira, trazer para mim uma flor, um pastel e um poema. São mais de 500 e o Lu (como ela chama o marido) quer que eu escolha 100. Para mim todos são especiais", revela.