Raquel Cusk: “Já me pareceu que a vida é  aquilo que você não sabe e não se esforça para entender vai se tornar exatamente a coisa que você será forçado a conhecer”
Raquel Cusk: “Já me pareceu que a vida é  aquilo que você não sabe e não se esforça para entender vai se tornar exatamente a coisa que você será forçado a conhecer” | Foto: Siemon Scamell-Katz/Divulgação

Rachel Cusk é aquele tipo peculiar de autora capaz de escrever coisas como: “Talvez seja só nas nossas feridas que o futuro consegue se enraizar.” Ou como: “Amadurecer foi como abrir uma presente de Natal e descobrir que o que havia lá dentro já estava quebrado.” Ou ainda: “Muita gente passa a vida tentando fazer as coisas durarem como uma forma de evitar se perguntar se essas coisas eram o que elas de fato queriam.”

A literatura de Rachel Cusk pode ser descrita como a arte de caminhar pela superfície da vida com toda normalidade para, em cada passo, afundar os pés em camadas e mais camadas de profundidade. Tudo isso sem grandes impactos ruidosos, apenas o calmo caminhar do cotidiano. E voltar para casa, todos os dias, com os sapatos sujos com algum tipo de reflexão.

“Esboço”, o primeiro romance de Rachel Cusk publicado no Brasil pela editora Todavia já assinalava a potência literária da autora canadense. Agora, com o lançamento de “Trânsito”, pela mesma editora, essa potência fica totalmente visível. Os dois livros integram uma trilogia que se encerra com “Kudos”, terceiro volume previsto para ser lançado em 2021.

A trilogia traz uma mesma narradora, Faye, relatando episódio de seu cotidiano. Faye é escritora recém-divorciada, mãe de dois filhos pequenos. Além de escritora de ficção, ganha a vida ministrando oficinas de escrita criativa e palestras sobre literatura.

Raquel Cusk: “Já me pareceu que a vida é  aquilo que você não sabe e não se esforça para entender vai se tornar exatamente a coisa que você será forçado a conhecer”
Raquel Cusk: “Já me pareceu que a vida é  aquilo que você não sabe e não se esforça para entender vai se tornar exatamente a coisa que você será forçado a conhecer” | Foto: Siemon Scamell-Katz/Divulgação

O detalhe está em Rachel Cusk não apresentar a história da personagem Faye de maneira direta, mas através de pessoas desconhecidas que ela encontra pelo caminho. A partir do diálogo que estabelece com essas pessoas, o leitor tem acesso à história de Faye de maneira indireta.

Essas pessoas podem ser tanto um pedreiro como uma estudante, um executivo ou um cabeleireiro, uma fotógrafa ou uma amiga. Não interessa o tipo de pessoa, mas como a história de vida que essas pessoas têm para narrar determina a forma que se relacionam com o mundo.

Algo como um sujeito caminhando pela cidade, vivendo o cotidiano e conversando com quem encontra pela frente. Conversando com pessoas ao acaso, sem relações entre si. Aquilo que num primeiro momento parece uma sucessão de conversas isoladas e aleatórias, num segundo momento passa a revelar, sutilmente, a história do próprio sujeito que caminha pela cidade.

Os personagens que atravessam o caminho de Faye possuem uma oculta consciência de que narrar suas existências confere sentido às suas vidas. E, para narrar, precisam pensar sobre aquilo que sentem. Precisam pensar também como suas escolhas estão atreladas às escolhas de outras pessoas, como a relação que estabelecem com as pessoas determinam essas escolhas. Mesmo que, em alguns momentos, “parecer errado a vida inteira estar baseada na escolha”.

Tanto em “Esboço” e “Trânsito”, a narradora, ao ouvir as histórias das pessoas que encontra pelo caminho, tem a consciência de que “a narrativa inevitavelmente mostra as pessoas sob uma luz favorável.” Ou seja, cada pessoa, ao narrar sua própria história, tende a favorecer seus sentimentos, feitos e sentidos: “O desejo do narrador vencer faz com que a verdade da história seja sacrificada”.

Em sua trilogia, Rachel Cusk resgata algo extraordinário: a narrativa de uma vida geralmente sacrifica a verdade para construir uma vida imaginária que se descola do erro e do fracasso. Existe a tendência das pessoas construírem uma estrutura durante um período de intensidade que nunca mais se repete: “Esse período passa a ser a base da sua fé, e você às vezes duvida dele, mas nunca renuncia a ele porque uma parte demasiadamente grande de sua vida se apóia neste chão”.

Uma das propostas de “Esboço” e “Trânsito” está em olhar a vida do lado de dentro, algo que parece ser a possibilidade mais verdadeira. Já que olhá-la do lado de fora pode significar não fazer mais parte da vida, distanciar-se dela. Entender a vida bem de perto parece ser extremamente humano e, ao mesmo tempo, ao alcance das mãos do próximo.

Rachel Cusk nasceu em 1967, filha de pais ingleses, no Canadá. Passou a infância nos Estados Unidos e fixou residência na Inglaterra durante a juventude. Autora de mais de uma dezena de romances, sua literatura possui componentes ambivalentes marcantes. É aquele tipo revelador de escritora que escreve coisas como: “Às vezes já me pareceu que a vida é uma série de punições para momentos de desatenção, que uma pessoa molda o próprio destino com aquilo em que não repara ou pelo que não sente compaixão. Que aquilo que você não sabe e não se esforça para entender vai se tornar exatamente a coisa que você será forçado a conhecer.”

Serviço:

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. | Foto: Divulgação

“Esboço”

Autora – Rachel Cusk

Editora – Todavia

Tradução – Fernanda Abreu

Páginas – 192

Quanto – R$ 59,90 e R$ 39,90

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. | Foto: Divulgação

“Trânsito”

Autora – Rachel Cusk

Editora – Todavia

Tradução – Fernanda Abreu

Páginas – 200

Quanto – R$ 59,90 e R$ 36,90