Existem obras e escritores que dizem sim à literatura com exaltações, babações e louvores. Também existem escritores e obras que dizem não à literatura com abandono, desabrigos e recusas.

Em “Bartleby e Companhia”, romance que a editora Companhia das Letras acaba de lançar, o escritor espanhol Enrique Vila-Matas evoca autores e obras que pronunciam um sonoro não à literatura.

O romance é narrado por um sujeito que na juventude publicou um “romancezinho sobre a impossibilidade do amor”. E a partir do trauma com o livro, nunca mais voltou a escrever, renunciou radicalmente à escrita.

Após décadas de negação literária, o sujeito volta à escrita para falar sobre o que ele nomeia de ‘bartlebys’: escritores que carregam dentro de si uma profunda negação do mundo. O termo provém do nome do escriturário Bartleby, personagem de um conto do escritor norte-americano Herman Melville (1819 – 1891).

Conhecido pela autoria do romance “Moby Dick”, Melville escreveu “Bartleby, o Escrivão” em 1853. Narrava a história de um funcionário de escritório que resolve não fazer os serviços que devia executar. Quando alguém lhe entrega um trabalho, ele apenas diz: “Preferia não fazer”. As recusas aumentam com o tempo e Bartleby acaba ficando em sua mesa de trabalho das 8h às 18h sem fazer nada. Completamente imerso no nada. O chefe, desconsertado diante do absurdo, não sabe o que fazer e permanece sem ação. E assim Bartleby segue no escritório, sem fazer nada, sem ser despedido.

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. | Foto: Basso Cannarsa/ Divulgação

Enrique Vila-Matas cria uma personagem que se apropria de outra personagem criada por Hernan Melville para diagnosticar uma síndrome literária: “Faz tempo que venho rastreando o amplo espectro da Síndrome de Bartleby na literatura, já faz tempo que estudo a doença, o mal endêmico das letras contemporâneas, a pulsão negativa ou a atração pelo nada que faz com que certos criadores, mesmo tendo consciência muito exigente, nunca cheguem a escrever; ou então escrevam um ou dois livros e depois renunciem à escrita; ou, ainda, após retomarem sem problemas uma obra em andamento, fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre.”

Realizando uma fusão entre romance e ensaio literário, “Bartleby e Companhia” passeia por uma coleção de escritores que colocaram em prática aquilo que Vila-Matas chama de ‘Literatura do Não’. Autores que nunca escreveram um único livro. Autores que começaram vários livros, mas não terminaram nenhum. Autores que desistiram da literatura após o primeiro livro. Autores que viraram eremitas em total silêncio. Autores que negaram a própria literatura. Autores que tiveram num branco eterno. Autores que destruíram seus escritos. Autores que mudaram de nome e profissão. Autores que desapareceram no mundo. Autores que escreveram livros nunca lidos. Autores que viraram fumaça.

Como o próprio narrador de “Bartleby e Companhia” sofre da Síndrome de Bartleby, seus argumentos estão baseados em casos de dezenas de escritores reais que viverem a mesma patologia ficcional. E para encarar as fatais contradições de negação da escrita, utiliza as ferramentas humor: “Escrever que não se pode escrever também é escrever”.

Para concluir o desenho da literatura no não, o narrador recorre à figura do escritor russo Liev Tolstói (1828 – 1910) que, no final da existência, começou a encarar a literatura como uma espécie de maldição. Passou a destilar ódio à escrita e acabou falecendo com a seguinte síntese: “A consciência moderna de toda literatura é a negação de si mesma.”

Nascido em Barcelona em 1948 e com dezenas de obras publicadas, Enrique Vila-Matas possui como grande característica criar literatura a partir da própria literatura. A matéria prima de sua escrita é o universo de obras e autores. E é irônico ao criar a imagem da literatura contemporânea como uma arte saturada de si mesma. Tão saturada de si mesma que a grande obra prima torna-se aquela que se recusou a ser escrita. E o grande escritor, aquele que não conseguiu escrevê-la.

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. | Foto: Divulgação

Serviço:

“Bartleby e Companhia”

Autor – Enrique Vila-Matas

Editora – Companhia das Letras

Tradução – Josely Vianna Baptista e Maria Carolina de Araújo

Páginas – 184

Quanto – R$ 69,90 (papel) e 42,90 (e-book)