Natsuki é uma garota de 11 anos de idade que possui, em segredo, alguns objetos mágicos. Uma varinha mágica de origami, um espelho transformador e um bichinho de pelúcia extraterrestre. No campo da imaginação, todas essas coisas a protegem do mal e dos perigos do mundo.

Protegida, Natsuki consegue ver como as coisas funcionam na sociedade de uma maneira límpida: “Eu moro em uma fábrica de fazer pessoas. Minha cidade é uma sequência de ninhos humanos, um ao lado do outro. Dentro dos ninhos retangulares, dispostos organizadamente lado a lado, habitam pares de humanos machos e fêmeas com seus filhotes. Os pares acasalam e criam os filhotes dentro de seus ninhos. Eu moro em um deles. Essa é uma ‘fábrica de gente’, formada pela carne dos corpos. Um dia nós filhotes seremos despachados para fora da fábrica. Uma vez despachados, tantos os machos quanto as fêmeas precisam, primeiramente, passar por um treinamento para conseguir obter o próprio alimento. Assim eles se tornam ferramentas do mundo e recebem de outras pessoas o dinheiro necessário para comprar o próprio alimento. Eventualmente, esses jovens humanos também formam pares, instalam-se em ninhos e começam a produzir filhos.”

Natsuki é a personagem principal de “Terráqueos”, do novo romance da escritora japonesa Sayaka Murata lançado no Brasil pela editora Estação Liberdade. Uma pré-adolescente que não se encaixa numa sociedade opressora regida por normas e padrões implacáveis. Como autodefesa, ou autoproteção, imagina poderes mágicos como forma de sobrevivência.

Natsuki não tem a intenção de, para ser aquilo que ela realmente é, lutar contra a sociedade, contra a família, ou contra o mundo. Ela quer fazer parte da normalidade, ser uma pessoa normal. Sua intenção é apenas se enquadrar, ser uma exemplar ferramenta do mundo. Seu interesse é se esforçar na escola para se tornar uma boa ferramenta para o trabalho. Sua intenção é se esforçar como mulher para se tornar um bom órgão reprodutivo para a família e a sociedade.

A garota se esforça como pode para fazer parte da “fábrica de gente”, mas fracassa. Mesmo com os instrumentos da imaginação, ela fracassa. Mesmo com toda intenção e empenho, ela fracassa. Mesmo tentando se enquadrar em normas e padrões, ela fracassa.

Um fracasso que chega até a idade adulta, quando Natsuki, com 30 anos, prolonga o imaginário para a realidade do mundo. Começa a acreditar que é uma extraterrestre, como seu antigo bichinho de pelúcia da infância, originária do planeta Powapipinpobopia. Então uma solução se apresenta: sendo um ser de outro planeta, ela não precisa viver necessariamente regida pelas normas, regras e padrões dos terráqueos.

Para essa solução desesperada, Natsuki arrasta juntamente seu primo e namorado de infância, Yuu, e seu marido de fachada, Tomoya. Os três, pessoas que nunca conseguiram ser tornar ferramentas da “fábrica de gente”, se assumem como extraterrestres em nome de uma ideia de liberdade. Uma posição de rebeldia contra a opressão da família e da sociedade, para enfim viverem em liberdade. Para deixarem de apenas de “sobreviver” para enfim começarem a “viver”.

Diante da possibilidade de uma possível liberdade, a personagem de “Terráqueos” chega à seguinte conclusão: “O senso comum é uma doença contagiosa e é difícil manter a infecção sozinha.”

Em “Terráqueos”, Sayaka Murata cria uma narrativa que, a princípio, parece uma história ingênua. Mas ao longo das páginas ganha proporções sinistras e crueis entre o sarcasmo e o absurdo. Começa com a ludicidade da normalidade para culminar com o apocalipse dessa mesma normalidade. Todos os limites são deixados de lado para a consumação da liberdade extrema.

A escritora japonesa faz de “Terráqueos” uma extensão temática de seu romance anterior, “Querida Konbini” (Estação Liberdade, 2018), onde a personagem principal, Keiko, chega a seguinte síntese: “O padrão do mundo é compulsório e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam sendo retirados do mundo.”

Sayaka Murata nasceu em 1979, em Chiba, província da região de Tókio. É uma das grandes vozes da literatura japonesa da atualidade agraciada com os principais prêmios literários do Japão. Os temas recorrentes de sua obra apontam para o questionamento de padrões de conformidade nas relações de gênero, de trabalho, de família e de sexualidade dentro das sociedades contemporâneas.

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. | Foto: Divulgação

Serviço:

“Terráqueos”

Autora – Sayaka Murata

Editora – Estação Liberdade

Tradução – Rita Kohl

Páginas – 288

Quanto – R$ 59