Três semanas atrás os jornais noticiaram um grave acidente ferroviário ocorrido no interior dos Estados Unidos. O descarrilamento de trens com produtos químicos provocou um incêndio que cobriu de fumaça tóxica a pequena cidade de East Palestine. A população, em estado de pânico, precisou ser evacuada em situação de emergência.

Um acidente igual em situação muito semelhante foi previsto ficcionalmente pelo novo filme do cineasta Noah Baumbach, “Ruído Branco”, que passou a ser exibido pela Netflix em janeiro. Na verdade o diretor do filme não previu nada. Apenas realizou uma adaptação cinematográfica do romance homônimo de autoria do escritor norte-americano Don DeLillo publicado em 1984.

Don DeLillo tampouco previu o acidente com 40 anos de antecedência, ou qualquer outro acidente similar. Apenas utilizou a possibilidade de um acidente tóxico para retratar o medo da morte no café da manhã das famílias imersas no deslumbrado consumismo da década de 1980.

O romance de Don DeLillo foi publicado no Brasil em 1986 pela editora Companhia das Letras e até hoje continua sendo reeditado. Pode ser considerado uma das principais obras do autor considerado um dos pilares do cânone da literatura norte-americana contemporânea.

Em “Ruído Branco”, DeLillo narra a historia de Jack, um professor universitário que inventa um curso de “hitlerologia” (estudo sobre Adolf Hitler) na universidade em que trabalha. Após passar por vários casamentos, vive ao lado de Babette, que igualmente passou por vários casamentos. A família agrega todos os filhos dos casamentos anteriores em idades diferentes.

Jack e Babette, todo dia na cama, antes de dormirem, gostam de conversar sobre quem vai morrer primeiro. Num jogo, cada um declara que prefere morrer primeiro na perspectiva de que não seria capaz de sobreviver sem o outro.

Quando um acidente de trens com produtos químicos acontece e a cidade é coberta por fumaça tóxica, Jack sofre uma contaminação. Diante da possibilidade da morte indicada pelos médicos, entra em pânico. Um pânico semelhante ao de Babette que, secretamente, toma uma nova droga da indústria farmacêutica que promete remover o medo da morte dos pacientes.

Don DeLillo coloca todas as discussões e reflexões dos personagens nos corredores de supermercados e shoppings. O cotidiano da vida familiar, como referência de realidade, acontece nos nos supermercados ou diante de programas de televisão.

O autor coloca dezenas e dezenas de diálogos improváveis enquanto os personagens vagam por supermercados impelidos pelo desejo de consumo. Existe a ideia recorrente do consumo como bem-estar infinito: “Multidões entravam a saiam das lojas. Sentíamos cheiros de chocolate, pipoca, colônia. Minha família exultava. Eu era um deles, fazendo compras. A toda hora eu me via inesperadamente em diferentes superfícies refletoras. Havia sempre outra loja a visitar, três andares, oito andares, subsolo cheio de cortadores de queijo e descascadores de legumes. Eu comprava coisas com uma volúpia cega. Comprava coisas para uso imediato e para contingências longínquas. Comprava por comprar, olhando e pegando, examinando mercadorias que eu não tinha a intenção de comprar, e depois comprando-as. Comecei a ganhar estatura, amor-próprio. Inflei-me, descobri novos aspectos em mim, localizei uma pessoa que eu esquecera que existia. Formou-se uma luminosidade a meu redor. Eu trocava dinheiro por produtos. Quanto mais dinheiro eu gastava, menos importância ele tinha. Eu valia mais do que essas quantias. Elas escorriam de minha pele como água da chuva. Retornavam para mim sob a forma de crédito existencial.”

Em “Ruído Branco”, a sensação de bem-estar infinito esbarra no primeiro gotejar do medo da morte. O consumo não pode ser considerado, ininterruptamente, o oposto da morte. Para DeLillo, a morte pode ser uma fronteira que o ser humano necessariamente precisa ter. Uma fronteira que concede uma definição à vida, que dá uma preciosa textura à vida: “Você devia se perguntar se existe alguma coisa que você faça nessa vida que teria mais beleza e significado sem a consciência de que você tem uma reta de chegada, uma fronteira ou limite.”

“Ruído Branco” é um romance repleto de humor sutil e ironias subliminares. Pode apontar o medo da morte como “a autoconsciência elevada a um nível superior”, ou como “a autocomiseração de que o amor é mais forte do que a morte”. Também pode colocar o consumo desenfreado como uma máscara para o medo da fronteira.

Imagem ilustrativa da imagem Livro 'Ruído Branco' traz uma reflexão sobre a morte
| Foto: Divulgação

Serviço:

“Ruído Branco”

Autor – Don DeLillo

Tradução – Paulo Henriques Britto

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 320

Quanto – R$ 69,90