A pandemia da covid-19, ocorrida entre os anos de 2020 e 2022, deixou marcas profundas na população. As consequências subjetivas ainda estão impregnadas no corpo e na memória das pessoas.

Em sua estreia na ficção, com o romance “Submissa Gramática dos Corpos”, o professor e pesquisador de literatura da UEL Frederico Garcia Fernandes mergulha de pele e osso no universo da pandemia.

O lançamento do livro acontece nesta quarta-feira (13), às 19h, no Sesc Londrina Cadeião com autógrafos e bate-papo com o escritor. Publicado pela editora Caravana, o romance foi criado a partir de entrevistas com dezenas de pessoas de Londrina e região que viveram as entranhas da pandemia. O próprio autor passou uma temporada hospitalizado devido ao coronavírus.

Seguindo uma narrativa polifônica, “Submissa Gramática dos Corpos” é um romance formado por várias vozes vivendo impactos diferentes da pandemia. São vozes isoladas sem a capacidade de comunicação. São corpos que sofrem sob a atmosfera da covid dependendo da classe social e das relações de poder. O próprio vírus é uma das personagens com voz e expressão na narrativa.

A seguir, Frederico Garcia Fernandes fala do romance e de como a pandemia evidenciou um retrato do país.

“Submissa Gramática dos Corpos” retrata a atmosfera da pandemia de covid-19. Trata-se de um romance puramente ficcional ou possui elementos reais?

O romance é uma ficção baseada em 56 entrevistas com moradores da Região Metropolitana de Londrina produzidas com a finalidade de compreender os impactos da pandemia na vida das pessoas. Além disso, também fui infectado e me considero um sobrevivente do vírus e pude vivenciar de dentro de um hospital a dolorosa e triste realidade de um sistema de saúde mergulhado no caos. Muitas das histórias de vida e a minha própria experiência foram a base dos conteúdos de que tratam esse romance, o que, de fato, traz uma pincelada realista à obra, porém nenhuma personagem é verídica, elas são criações estéticas que sintetizam os vários acontecimentos. Como diria Umberto Eco, toda ficção é uma parasita da realidade.

No romance as personagens falam, mas não existe resposta para suas vozes. As vozes parecem isoladas, impotentes, aprisionadas e sem possibilidade de comunicação. Que isolamento é esse?

Sinto que a comunicação hoje em dia, sobretudo a franqueada pelas redes sociais, tem sido responsável por uma certa “esquizofrenia social”. As pessoas vivem em bolhas comunicacionais, estando vulneráveis a mensagens tóxicas, mentirosas e motivadoras do ódio. A ideia de felicidade, num contexto como esse, tende a reduzir-se a fotografias de sorrisos largos e corações entristecidos e, é claro, ao prazer efêmero e insaciável do consumo. Um outro sintoma é a necessidade de os sujeitos se autoafirmarem por meio de suas idiossincrasias, emitindo opiniões sobre tudo e todos. Parece que o outro não importa mais na comunicação. As pessoas repassam o que lhes chega pelo celular como se estivessem cumprindo um ato cívico, replicando normas e moralismos que não seguem. Ao pensar numa narrativa que pudesse tratar de um momento tão doloroso e de uma anormalidade pungente, como foi a pandemia, pensei em interlocutores silenciados, como se fossem fantasmas daqueles que enunciam. Por isso, em “Submissa Gramática dos Corpos” renunciei ao narrador linear, viabilizando seu enredo por meio de diálogos não correspondidos.

O romance traz pessoas comuns vivendo as incertezas da covid, sofrendo as consequências da pandemia na pele. Ao mesmo tempo, traz pessoas vivendo certezas da pandemia, alheias às consequências. “Submissa Gramática dos Corpos” é o retrato de correlações de forças?

Sem dúvida, vivenciamos um período em que a escolha de corpos que devem morrer e merecem viver ficou explícita por meio de declarações públicas. Pude assistir a vários empresários, líderes religiosos e políticos justificando o injustificável em falas eivadas de desprezo pela vida de pessoas menos favorecidas. Nesse contexto, predominou a insensatez, à medida que a dor provocada pelas inúmeras perdas vinha sendo banalizada, como se o sacrifício de vidas fosse parte de um bem maior para salvaguardar a economia ou para criar uma imunização de rebanho, por exemplo. Além disso, havia o discurso da antivacina, de remédios preventivos e outros usos políticos da medicina disseminados com o intuito de deslegitimar instituições sérias, como universidades e centros de pesquisa, o que agravou ainda mais a situação. Quis escrever um romance que trouxesse esse contexto de polarizações e incertezas não apenas como forma de produzir uma memória, mas uma verdade que pudesse ser vivenciada com o corpo, ou seja, a partir das lembranças em nosso próprio corpo vibrando com as tensões presentes nos dramas dos personagens.

Frederico Garcia Fernandes: "Na pandemia, a dor provocada pelas inúmeras perdas vinha sendo banalizada, como se o sacrifício de vidas fosse parte de um bem maior para salvaguardar a economia ou  criar uma imunização de rebanho"
Frederico Garcia Fernandes: "Na pandemia, a dor provocada pelas inúmeras perdas vinha sendo banalizada, como se o sacrifício de vidas fosse parte de um bem maior para salvaguardar a economia ou criar uma imunização de rebanho" | Foto: Divulgação

Em “Submissa Gramática dos Corpos” você transforma o próprio vírus em personagem com direito a voz e espaço de expressão. Qual a razão dessa escolha?

Entendo que o sofrimento ocasionado pela pandemia não atingiu apenas humanos, mas também todas as espécies que convivem conosco neste planeta, as quais foram impactadas de diferentes modos. Assim, dei voz ao vírus como forma de entender a perspectiva de um não-humano, disputando com a humanidade a sobrevivência. O vírus, com certeza, encarna o enfrentamento e a luta pela vida. Soma-se a isso o fato de que, quando fui infectado pelo coronavírus, eu o sentia se comunicar comigo, ditando posições e reações para meu corpo, e outras pessoas me relataram a mesma sensação. Daí foi tomando corpo a ideia de dar voz a ele e de trazê-lo para o romance como uma das personagens principais.

“Submissa Gramática dos Corpos” é uma ficção formada por múltiplas vozes e tempos diversos não lineares. Por que você escolheu essa estrutura para a compor a narrativa?

A estrutura polifônica é bastante clara nesse romance e foi um modo que encontrei de sintetizar num período mais agudo da pandemia as várias lembranças e temporalidades que o atravessaram. Como se trata de diálogos não correspondidos e as personagens não possuem um nome, me esforcei para dar uma dicção a cada uma delas, me preocupando com expressões e termos linguísticos caracterizadores de cada uma das identidades. Também me utilizei de “notificações” (como aquelas que recebemos pelos nossos celulares) para auxiliar na construção de um quadro temporal, situando os acontecimentos dentro de uma cronologia de fatos.

Você possui uma longa trajetória como pesquisador e professor de literatura, organizador e curador de projetos e eventos literários. O que representa sua estreia na ficção com “Submissa Gramática dos Corpos”?

Uma vez, pesquisando o conceito de “outridade” me deparei com uma frase de Lacan que me chamou atenção. Ele dizia que a ficção é a única forma para se dizer a verdade. Veja, ao longo de 30 anos na carreira de pesquisador da literatura, eu publiquei mais de uma dezena de livros como autor, tradutor e organizador, mas senti que me faltava aceitar o desafio de escrever um texto que pudesse tratar da verdade dada pela ficção. Quando pensei num projeto de pesquisa sobre experiências e relatos da covid-19, já tinha em mente desenvolver um projeto de escrita literária. Havia feitos alguns ensaios e vinha acumulando tentativas de romances que não se realizaram. Escrever um romance é bem diferente de escrever um trabalho acadêmico, mas aceitar o desafio me aproximou de uma linguagem mais estética e sensível ao mundo.

Imagem ilustrativa da imagem Livro que será lançado em Londrina faz um retrato da pandemia
| Foto: Divulgação

SERVIÇO

“Submissa Gramática dos Corpos”

Autor - Frederico Garcia Fernandes

Editora – Caravana

Apresentação – João Anzanello Carrascoza

Páginas – 124

Quanto – R$ 60 (na editora) e R$ 50 (no lançamento)

Lançamento:

Quando – Quarta-feira (13), às19h

Onde – Sesc Londrina Cadeião (Rua Sergipe, 52)