A filosofia e a literatura nasceram juntas. Ao longo do tempo seguiram caminhos distintos, mas nunca perderam o contato. Em seu novo livro “Kafka e Schopenhauer: Zonas de Vizinhança”, o poeta e dramaturgo londrinense Maurício Arruda Mendonça investiga as conexões entre literatura e filosofia. Mais especificamente entre a ficção do escritor tcheco Franz Kafka (1883 – 1924) e o pensamento do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788 – 1860).

Lançada pela editora Eduel, a obra revela que existe criatividade tanto na literatura quanto na filosofia. E, igualmente, existe reflexão tanto na filosofia quanto na literatura. Analisando a literatura de Kafka através da ótica da filosofia, o autor demonstra que uma das mais importantes contribuições de Kafka para o romance moderno seria a “capacidade em estruturar seus textos de forma a fazer o leitor experimentar e vivenciar a estranheza do mundo”.

Nascido em 1964, Mendonça é autor de “Eu Caminhava Assim Tão Distraído” (1997), “À Sombra de um Sorriso” (2000) e “Epigrafias” (2002). Traduziu autores como Sylvia Plath, Arthur Rimbaud e Nempuku Sato. Como dramaturgo, escreveu mais de uma dezena de peças para o Armazém Companhia de Teatro. A seguir, Maurício Arruda Mendonça fala sobre seu novo livro.

“Kafka e Schopenhauer: Zonas de Vizinhança” realiza uma aproximação entre literatura e filosofia. O que elas possuem em comum?

Podemos dizer que a filosofia surge na Grécia como uma prática oral e que, com Platão, a filosofia passa a ser escrita. Platão vai buscar o modelo para os seus diálogos filosóficos e para a personagem de Sócrates no drama, nos diálogos da comédia e da tragédia. É por isso que Nietzsche afirmará que Platão é o grande precursor não só da filosofia escrita, mas do romance literário. Portanto, drama, literatura e filosofia têm uma origem comum. Um período em que os laços entre literatura e filosofia se tornaram indissociáveis foi o do Iluminismo, com obras literárias que apresentavam questões filosóficas. O romance filosófico torna-se um subgênero muito praticado, inclusive por Machado de Assis. O que há em comum entre filosofia e literatura é que conceitos podem ser ilustrados artisticamente, pode haver personagens conceituais em ação em romances. Também a maneira de expressão da reflexão filosófica pode incorporar gêneros literários como a carta, o diário, a alegoria, a parábola, o aforismo, como é fartamente observável na escrita de vários filósofos.

Maurício Arruda Mendonça: "Como advertiu Hannah Arendt, admiradora de Kafka, o sujeito ideal para os totalitarismos é aquele para quem a diferença entre realidade e ficção desapareceu"
Maurício Arruda Mendonça: "Como advertiu Hannah Arendt, admiradora de Kafka, o sujeito ideal para os totalitarismos é aquele para quem a diferença entre realidade e ficção desapareceu" | Foto: Valéria Felix/ Divulgação

Qual conexão você estabelece entre a literatura de Kafka e a filosofia da Schopenhauer?

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer com seu pessimismo e sua metafísica da Vontade foi considerado o filósofo dos artistas, ele influenciou um vasto número de artistas no final do século 19 e boa parte do século 20, de escritores a pintores, de poetas a cineastas. Kafka ainda mais por ser um escritor da literatura alemã e uma pessoa extremamente bem informada, estava embebido da filosofia e do pessimismo schopenhauriano de maneira direta e indireta. Assim, transparecem em determinados textos de Kafka alusões a conceitos ou trechos da obra de Schopenhauer, como a ideia do “O Castelo” em “O Mundo como Vontade e Representação” ou o conceito schopenhauriano de Indestrutibilidade nos aforismos Kafka, ou ainda o título “Colônia Penal” de Kafka extraído de “Parerga e Paralipomema” de Schopenhauer. Fora isso, o pessimismo de Kafka dialoga com o pessimismo do filósofo.

E qual a diferença entre o pessimismo de Kafka e o de Schopenhauer?

Diria que, paradoxalmente, o pessimismo de Schopenhauer tem um lado otimista, pois ele afirma que cada um de nós tem uma ilusão de individualidade, mas que diante da morte não devemos temer, pois o “lado bom da coisa” é que a espécie humana é indestrutível. Já no pessimismo de Kafka não existe lado bom nisso, pois que a morte ocorre e se repete incessantemente.

Na obra você aponta que a ambiguidade é um elemento recorrente na vida e na obra de Kafka. Por quê?

Porque podemos compreender, por exemplo, que Kafka pode estar falando da angústia do controle sem sentido das estruturas de poder ou, ao mesmo tempo, da relação pessoal dele, da opressão que a figura paterna exercia sobre ele. Ou o romance “O Processo”, que pode ser simultaneamente um libelo filosófico, político, religioso, psicanalítico, estético. Kafka é o tipo de escritor cujas obras produzem as mais diferentes interpretações e desafiam uma última palavra sobre elas. Daí a sua força que já dura praticamente um século.

Em um dos capítulos do livro, a partir do texto “Colônia Penal” de Kafka, você apresenta a ideia do mundo como uma grande penitenciária. Como é isso?

Essa ideia é de Schopenhauer no “Parerga e Paralipomena”. Em seu pessimismo ele vê este mundo como um mundo de sofrimento sem causa, no qual, “o carrasco e a vítima são um só”. Ninguém escapa das garras da Vontade cega. Já em “Colônia Penal”, Kafka alegoriza essa ideia de Schopenhauer quando o oficial-carrasco faz-se prender na máquina de tortura que inscreve na carne o crime cometido, tornando-se o condenado. Essa colônia penitenciária descrita por Kafka é de certa forma uma alusão metafísica do mundo.

Ao longo do tempo o termo “kafkiano” se tornou popular e dicionarizado. O que o universo kafkiano representa no mundo atual?

Uma das características da visão kafkiana é a de que, em suas narrativas “o mais espantoso é que o espantoso não espanta ninguém”, como disse Gunther Anders. Por exemplo, em “A Metamorfose”, o fato de o protagonista despertar de manhã e se ver transformado em um grande inseto asqueroso não espanta a ele e nem à sua família.

Por acaso o Brasil seria kafkiano?

O Brasil é um país kafkiano, no qual existem milhões de pessoas vivendo miseravelmente, florestas e rios sendo destruídos, pessoas negando a pandemia, afirmando que a Terra é plana, são coisas absolutamente espantosas que não espantam ninguém. Se nos serve de advertência, lembremos que Kafka previu de certa forma os horrores e a carnificina da Segunda Guerra Mundial muito antes que ocorressem. Nós brasileiros precisamos começar a nos espantar mais com as coisas ao nosso redor para evitar o pior.

E o que seria o pior?

Deixar que as estruturas de poder como governos, religiões, economia baseadas na crueldade, na baixeza, na ignorância e na alienação do sujeito dominem a sociedade integralmente. Como advertiu Hannah Arendt, admiradora de Kafka, o sujeito ideal para os totalitarismos é aquele para quem a diferença entre realidade e ficção desapareceu. Se nada mais é verdade, se tudo é falso, fake, o que poderemos opor a isso? O caminho, creio, é não sermos indiferentes ao que acontece e resgatarmos aquilo que nos torna humanos.

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Serviço:

“Kafka e Schopenhauer: Zonas de Vizinhança”

Autor – Maurício Arruda Mendonça

Editora – Eduel

Páginas – 226

Quanto – R$ 54 (papel) R$ 32,40 (e-book)