Maria Esther Maciel: "A existência de tantos nomes próprios convertidos em nomes comuns de bichos e plantas tem a ver com o imaginário popular"
Maria Esther Maciel: "A existência de tantos nomes próprios convertidos em nomes comuns de bichos e plantas tem a ver com o imaginário popular" | Foto: Iana Domingos/ Divulgação
Maria Esther Maciel: "A existência de tantos nomes próprios convertidos em nomes comuns de bichos e plantas tem a ver com o imaginário popular"
Maria Esther Maciel: "A existência de tantos nomes próprios convertidos em nomes comuns de bichos e plantas tem a ver com o imaginário popular" | Foto: Iana Domingos/ Divulgação

Existem as Marias. Maria-farinha. Maria-fedida. Maria-barulhenta. Maria-seca. Maria-dormideira. Maria-cabeçuda. Maria-boba.

Existem também os Joões. João-grilo. João-torresmo. João-de-pau. João-doidão. João-cachaça. João-pobre. João-baiano.

Também há as Viúvas. Viúva-de-saia-preta. Viúva-rabilonga. Viuvinha-alegre. Viuvinha-regateira. Viuvinha-do-brejo.

Também há os híbridos. Cobra-papagaio. Peixe-joaninha. Formiga-leão. Perereca-cabrinha. Orquídea-macaco. Grilo-toupeira. Bromélia-zebra. Bagre-sapo. Besouro-rinoceronte.

Todos esses outros curiosos habitantes do planeta estão em “Pequena Enciclopédia de Seres Comuns”, novo livro da escritora mineira Maria Esther Maciel lançado pela editora Todavia com ilustrações de Julia Panadés.

Inspirada nos tratados de seres fantásticos que povoam a literatura universal, a autora percorreu a jornada de criar um tratado de seres comuns da natureza. Misturando zoologia, botânica e literatura, embaralhando referências humanas e não humanas em animais, aves, insetos e peixes. E também plantas, como a Maria-sem-vergonha (Impatiens parviflora): “Cresce em canteiros, trechos de estradas, vasos e jardineiras, sem conter seu impaciente desejo e estar presente em todos os caminhos. Em certas noites, porém, ela gosta de ficar sozinha.”

Nascida em Patos de Minas, em 1963, Maria Esther Maciel é professora de Literatura na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de duas dezenas de títulos, entre eles “O Livro de Zenóbia” (2004), “O Livro dos Nomes” (2008), “Literatura e Animalidade” (2016) e “Longe, Aqui” (2020).

A seguir Maria Esther fala de seu novo livro.

“Pequena Enciclopédia de Seres Comuns” promove a união entre literatura e compêndios enciclopédicos naturalistas. Qual sua intenção em promover esse encontro?

Tenho me dedicado, há vários anos, a uma investigação acadêmica sobre a presença de animais na literatura, o que me levou a percorrer muitos compêndios enciclopédicos naturalistas dos séculos passados, além dos bestiários medievais e as coleções zoológicas de escritores de diferentes contextos e nacionalidades. Como sempre procurei articular minhas pesquisas com o trabalho de criação, resolvi compor o meu próprio catálogo de seres não humanos, a partir da retomada – por um outro viés, mais afinado com as demandas do nosso tempo – desses compêndios e animalários. Dado o meu interesse também pela botânica, decidi incluir as plantas na minha coleção, atenta aos enlaces entre os reinos animal e vegetal. O critério escolhido para a composição do livro foi o onomástico, partindo dos nomes populares dos seres, mas sem abrir mão de nomenclaturas e referências científicas. Meu propósito foi mostrar que a natureza, em sua múltipla diversidade, é tão surpreendente, que muitas das criaturas que nela existem poderiam se confundir com as que habitam os livros de literatura fantástica.

Onde termina a ciência (zoologia e botânica) e começa a literatura (imaginação e fantástico), em “Pequena Enciclopédia de Seres Comuns”? Todos os bichos e plantas descritos realmente existem?

Assim como os seres híbridos que integram minha pequena enciclopédia, eu quis compor um livro também híbrido, em que ciência e imaginação se misturassem de maneira intrínseca, tanto no que tange à linguagem, quanto na escolha dos seres. Assim, misturei descrições científicas com elementos ficcionais e seres existentes com alguns poucos inventados. Ou seja, praticamente todos eles existem no mundo natural e estão nos livros científicos de zoologia e botânica. Criei apenas quatro e incorporei um, o peixe-banana, que aparece num conto de D. J. Salinger. Para esses, tive de inventar nomes “científicos”, seguindo o modelo da nomenclatura encontrada nos livros de taxonomia animal e vegetal. Mas mesmo os ficcionais poderiam existir, pois não têm nada de impossível. Vale ressaltar ainda que, na seleção dos meus seres, também me ative a questões de ordem ecológica, pois vários deles estão em extinção e em extremo perigo. São vítimas das práticas de extermínio e devastação da vida natural, como as que, em nome da ganância e do tal “desenvolvimento” econômico, se alastram hoje pelo nosso triste país.

No livro você apresenta animais e plantas que, em seus modos de vida, trazem referências e características humanas. Você considera que o antropomorfismo pode ser um bom instrumento literário, uma boa ferramenta poética?

Essa questão do antropomorfismo sempre me intrigou. É inegável que a humanização de seres não humanos sempre esteve presente na literatura de todos os tempos, com propósitos distintos. O antropomorfismo mais recorrente é o que usa o animal ou a planta como meros símbolos, metáforas e alegorias da vida humana, ou seja, colocando-os a serviço de algo que os ultrapassa. Mas não é esse que me interessa. Creio ser inevitável, para quem se propõe a escrever sobre vidas não humanas, uma certa dose de humanização. Como não podemos saber de fato o que se passa na esfera íntima desses seres, nem como eles veem o mundo e as demais espécies, cabe-nos, pelo exercício da empatia e dos sentidos, imaginar e transformar em linguagem humana tudo o que conseguimos apreender com esse esforço de compreensão/imaginação. Por mais que tentemos reconhecer esses outros como sujeitos dotados, cada um à sua maneira, de saberes próprios sobre o mundo que habitam, eles entram na literatura contaminados pelo olhar humano. A poesia, graças às suas potencialidades sensoriais, torna ainda mais possível esse traspassamento das fronteiras entre os mundos humano e não humano, levando-nos a descobrir formas híbridas de existência.

O livro está povoado por seres híbridos, sugerindo que na natureza há uma enorme coleção de seres incomuns, fabulares. Como também há, na literatura, uma enorme coleção de seres incomuns, fabulares e fantásticos. O que os híbridos significam?

Se, na literatura de várias épocas, os seres híbridos são, em sua maioria, fantásticos, monstruosos e prodigiosos, eu quis manter com esse legado uma espécie de simetria inversa, reunindo seres comuns, existentes no mundo natural, mas que, por suas características heteróclitas, não deixam de parecer incomuns e até inverossímeis. Como já disse, o princípio norteador foi o onomástico. Todos os seres escolhidos possuem nomes híbridos, por apresentarem características de outros viventes do reino animal ou do vegetal. De fato, é incrível como alguns animais reais são tão ou mais fabulosos que os que povoam a literatura fantástica. O que só atesta a afirmação de Jorge Luis Borges de que a “zoologia da natureza” é mais rica que a da mitologia e dos sonhos. O hibridismo também atravessa alguns seres de outras seções, além de incidir na própria composição do livro. Aliás, considero o hibridismo uma das linhas de força do cenário literário e cultural do nosso tempo. É algo que tenho tentado exercitar, de diferentes maneiras, no meu trabalho literário.

Em “Pequena Enciclopédia de Seres Comuns” há “joões” e “marias”. E há também “viúvas”. Como você lê o fato de existirem tantas plantas e animais com o nome popular de Maria, João e Viuvinhas?

Eu também me fiz essa pergunta quando, ao iniciar as investigações para o livro, deparei com inúmeros seres não humanos com esses nomes. Comecei com as Viuvinhas e Marias – por motivos pessoais –, mas aos poucos fui encontrando também diversos Joões nos mundos animal e vegetal. Resolvi, assim, incluí-los depois das Marias e antes dos híbridos – já previstos desde a concepção da “enciclopédia”. Sem dúvida, a existência de tantos nomes próprios convertidos em nomes comuns de bichos e plantas tem a ver com o imaginário popular. Em geral, isso advém de associações, lendas, crenças, superstições, fantasias e licenças da imaginação. Alguns nomes são lúdicos, engraçados e, por vezes, poéticos. Digo que me diverti demais com a pesquisa e a escrita dos verbetes, sobretudo ao embaralhar referências humanas e não humanas.

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. | Foto: Divulgação

Serviço:

“Pequena Enciclopédia de Seres Comuns”

Autora – Maria Esther Maciel

Ilustrações – Julia Panadés

Editora – Todavia

Páginas – 112

Quanto – R$ 56,90 (papel) e R$ 34,90 (e-book)