Existem os obcecados pelo tempo. Existem os obcecados pelo espaço. E existem os obcecados pelos pensamentos. Em qualquer situação, são pessoas insones. Figuras delineadas pela vigília sem fim.

Personagens insones imersos nos próprios pensamentos marcam os contos do novo livro do escritor paranaense Miguel Sanches Neto, “De Onde Vem a Insônia”.

Lançado pela editora Grua, o volume traz seis narrativas marcadas por figuras que escolhem não desperdiçar um dos elementos mais impalpável da existência: o tempo. E fazem disso uma obsessão com diferentes argumentos morais.

O conto mais marcante do livro, “Oficina de Reescrita de Clássicos”, narra a trajetória de um jovem escritor ávido em construir uma grande obra literária. Ao fazer uma oficina de escrita criativa, entra para um grupo religioso que pretende “corrigir a moral” das obras clássicas. Um movimento que se propõe a reescrever os grandes livros da literatura universal.

Miguel Sanches Neto possui mais de 30 livros publicados envolvendo romances, poesias, contos, crônicas e ensaios. Seu livro “Chove em Minha Infância” integra a atual lista de leitura obrigatória do vestibular da Universidade Estadual de Londrina.

A seguir, o escritor fala sobre sua nova obra, “De Onde Vem a Insônia”.

As personagens dos contos de “De Onde Vem a Insônia” vivem imersos em pensamentos que não descansam, não dormem. A insônia é o tormento ou o motor de todas as coisas?

A insônia é o motor de todos os questionamentos, pois no momento em que seu corpo deveria descansar, esquecer, sua mente continua desperta. O insone crônico, que para mim define o perfil do ficcionista, tem uma densidade existencial mesmo quando dorme, pois seu inconsciente está reelaborando experiências. E não seria a escrita uma forma de reorganizar todas as nossas vivências? Assim, eu diria que a insônia é a essência do artista, que, como uma máquina que nunca desliga, produz continuamente variações de ser. Ela não é um tormento, antes revela uma relação intensa com a vida. Os insones são pessoas tão obcecadas com o tempo que não querem desperdiçá-lo.

Miguel Sanches Neto: "A insônia é o motor de todos os questionamentos, pois no momento em que seu corpo deveria descansar, sua mente continua desperta"
Miguel Sanches Neto: "A insônia é o motor de todos os questionamentos, pois no momento em que seu corpo deveria descansar, sua mente continua desperta" | Foto: Fábio Ansolin/Divulgação

No conto “Oficina de Reescrita de Clássicos” aparece a ideia de literatura como religião, como fé na linguagem. A literatura pode ser uma fé?

Este conto explora uma tendência contemporânea de entender a literatura como um espaço moral. Vivemos uma era de crenças evangélicas em todos os campos, tanto os da direita quanto os da esquerda. A arte se colocou a serviço de um fim que se quer salvífico. Há os que desejam salvar as almas, os propriamente religiosos, e os que buscam salvar a sociedade. O resultado disso é uma produção falsa, comportada, controlada, que corresponde à moral de grupos ou subgrupos. Talvez estejamos no momento mais pobre da literatura dos últimos 100 anos, em que ela se tornou rasa por conta de posturas moralizantes. Então, criei uma história em que um jovem é colocado entre a arte e esta tendência de reescrever as obras incômodas. Toda boa literatura será incômoda e inadequada para fins pedagógicos.

Em dois contos presentes no livro os protagonistas são aspirantes a escritores. Personagens que enfrentam uma longa jornada em direção à literatura. Uma jornada que culmina, invariavelmente, no fracasso. A escrita pode ser considerada um território do fracasso?

Uma amiga, narrando a falência de um relacionamento, me disse que havia errado ao se unir a um escritor que não dera certo. Fiquei pensando nesta definição até chegar a um aforismo sobre o assunto. Todo bom escritor é alguém que não deu certo.

O fracasso está na origem da escrita, menor do que a história sonhada. Fracassamos principalmente quando escrevemos um bom livro, pois este será uma forma de questionar as verdades estabelecidas e criará rejeição ao nosso redor. Há, no entanto, uma beleza neste fracasso, pois coloca em situação de fragilidade quem ousou ir fundo na sua vocação de divergir. Um escritor de sucesso é um equívoco criado pelo mercado, esse monstro que tudo devora para produzir lucro. Quando um escritor ou escritora cai nas graças do mercado, a sua carreira se torna o avesso de sua própria vocação. Se o escritor quer ser grande, tem que fracassar. Fracassar tantas vezes até formar uma obra.

Nos contos de “De Onde Vem a Insônia” existem personagens protagonistas que viveram a infância em Peabiru. Essa pequena cidade do interior do Paraná também aparece um outros de seus livros como um lugar recorrente. O que representa Peabiru em sua literatura?

Peabiru é uma palavra carregada de identidade. Originalmente caminho que ligava o império inca ao oceano Atlântico, ele foi responsável, em alguma medida, por franquear este universo, então remoto e protegido, aos colonizadores. Então, esta palavra (que significa “caminho da relva amassada”) tem uma carga simbólica muito forte. Ela define também a cidade onde passei a infância e a adolescência, onde descobri as duas coisas mais importantes da vida, o amor e a morte. Nas suas ruas então sem asfalto, cheias de lama vermelha ou de poeira, continuo vagando mesmo depois de ter saído de lá há quase 40 anos. Pouca gente restou daquela minha cidade, muitos partiram para outros centros ou morreram, por isso me sinto na obrigação de repovoá-la com personagens fictícios. Quero aumentar a população de Peabiru por meio de meus livros, fazendo dela um centro. Peabiru é minha Macondo, minha Comala, com a diferença de que há uma réplica dela no mapa do Paraná. Mas neste livro há contos também que se passam em Portugal, Curitiba e Ponta Grossa, pois Peabiru é uma cidade limítrofe de todos os lugares que conheci.

Em uma entrevista que concedeu em 2022, logo após publicar o romance “O Último Endereço de Eça de Queiroz”, você declarou que estava encerrando sua carreira de escritor. Isso é realmente verdade?

Isso era verdade à época. Passei por uma crise de depressão muito grande por conta, principalmente, do patrulhamento moralista que estávamos e ainda estamos sofrendo, em que somos julgados pelos lacradores das redes sociais por aquilo que os personagens falam ou fazem. Como entender ficcionalmente a condição humana se não pudermos criar personagens a partir das infinitas diversidades de ser? O escritor só entra de maneira ficcional em um livro, por mais autobiográfico que ele seja. Mas a mente não-ficcional dos defensores das ideologias só enxerga no livro o escritor, e o acusa por qualquer frase escrita que esteja fora da cartilha. Vivemos a era das cartilhas, era de mentes rasas. Tudo isso me afastou por um tempo da escrita, tirou a minha liberdade de escrever. Acho que superei esta crise ao escrever o conto “Oficina de Reescrita de Clássicos”, em que o narrador se insubordina e questiona este amortecimento do humano na literatura contemporânea.

Dalton Trevisan é personagem marcante de seu romance “Um Chá das Cinco com o Vampiro”, de 2010. Com o falecimento do escritor na semana passada, centenas de notícias reforçavam sua importância na literatura paranaense e na literatura brasileira. Para você, qual a real importância da literatura de Dalton Trevisan?

Neste momento de moralismos hipócritas convocados para atender a uma demanda ideológica de arte (extremamente rentável), Dalton Trevisan é uma reafirmação do poder questionador da literatura. Nos seus livros, nenhum discurso artificial se sustenta, tudo é corroído por verdades terríveis que chocam os bem-pensantes.

Dalton tem a obra mais crítica às ideologias que sufocam a ficção. É um escritor sem lugar de fala. Não era noia e seus personagens noias contam a vida marginal como ela é. Não era mulher e cria narradoras prostitutas que confessam todas as maldades, dores e dramas. Não era assassino e revela a alma impiedosa dos que matam sem dó. Seus contos trazem narradores nestas primeiras pessoas múltiplas, conflitantes e amorais, em uma época em que se quer uma primeira pessoa restrita ao eu do autor, pois toda alteridade narrativa é tomada como usurpação.

Imagem ilustrativa da imagem Livro de contos traz pensamentos que não dormem
| Foto: Divulgação

SERVIÇO:

“De Onde Vem a Insônia”

Autor – Miguel Sanches Neto

Editora – Grua

Páginas – 224

Quanto – R$ 64