São Paulo, 31 (AE) - Abandonado pelas cinco amantes, um chinês magnata da indústria de absorventes femininos prepara uma vingança diabólica: depois de morrer misteriosamente, exige em testamento que suas mulheres utilizem um modelo novo, diminuto, que contém vitaminas, estimula e tonifica. O efeito é arrasador - logo, um desejo incontrolável enlouquece todas as mulheres de Madri, visto que a fama afrodisíaca do absorvente se espalhou pela capital espanhola. Resultado: centenas de homens chegam à míngua aos hospitais, vitimados pelo voraz apetite sexual de suas companheiras.
Eis um breve resumo de "Fogo nas Entranhas", livro com que Pedro Almodóvar estreou na literatura em 1981 revelando um aperitivo do que seria a marca registrada em seus filmes: tramas intricadas, personagens insólitos, situações bizarras e humor quase sempre desconcertante. A edição, há muito esgotada na Espanha, chega às livrarias brasileiras no dia 10 como o quarto volume da Coleção Babel da Dantes Editora.
Almodóvar desenvolveu uma carreira paralela ao cinema, como autor de livros, em que exercita seu estilo intenso e polêmico. A única obra que chegou às prateleiras brasileiras foi "Paty Difusa", texto editado pela Martins Fontes que a atriz Christine Tricerri planeja adaptar para o teatro. Com a chegada de "Fogo nas Entranhas, o cineasta espanhol, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro por Tudo sobre Minha Mãe", aumenta a coleção com um típico "pulp fiction".
Busca sem fim - "Li o livro em 1989 e sempre pensei em lançá-lo no Brasil", conta Anna Paula Martins, bibliófila que comanda a Dantes. "Mas perdi meu exemplar e não consegui encontrar outro, mesmo procurando em todos os sebos possíveis." A obra tornou-se raridade, pois nem na Espanha era possível encontrar. Anna Paula recorreu até a fãs confessos de Almodóvar, como Caetano Veloso, que foi anfitrião do cineasta em Salvador, em 1998, quando aproveitou para escrever o roteiro do filme que seria premiado em Hollywood. Caetano, porém, desconhecia o livro.
A procura parecia infrutífera quando o próprio cineasta conseguiu a solução, ao enviar uma fotocópia do livro. "Nem o próprio Almodóvar tinha um exemplar", diverte-se Anna Paula, que convenceu o diretor a negociar os direitos autorais depois de conhecer o teor da Coleção Babel: livros raros, que tiveram algum sucesso quando do lançamento, mas foram confinados ao esquecimento. Também o trabalho gráfico das edições agradou ao cineasta.
Para a edição brasileira do livro, Anna Paula encomendou a ilustração da capa ao artista Marcos Wagner, que adotou o tom vermelho berrante como padrão. Há ainda a reprodução de um anúncio que explica como usar um absorvente. Detalhe: em chinês. Também a tradução foi cuidadosa - com as fotocópias em mãos, Eric Nepomuceno fez a versão, mantendo o tom picaresco do folhetim.
"Os personagens são hilariantes", comenta Anna Paula. Como o empresário Chu Ming Ho, que se mudou para a Espanha porque as mulheres chinesas têm cara de Lua. Ou suas amantes de perfil bem definido: Katy, a espiã; Diana, a indômita; Mara, a cínica; Lupe, a hippie; e Raimunda, a nômade sem vocação.
Com a morte do empresário, cria-se um suspense sobre quem vai desvendar seu diário científico-pessoal, escrito em chinês. As dúvidas aumentam com a chegada a Madri de uma misteriosa viúva chinesa dada como morta em uma enchente em Cingapura. "Almodóvar adotou um estilo em que as cenas são mudadas rapidamente, como em uma história em quadrinhos", afirma a editora.
O prefácio foi escrito pela atriz Regina Casé. "A escolha foi por sua forma de humor também escrachado e porque o livro trata das possibilidades de vida de uma mulher", explica a editora. Inicialmente, Caetano Veloso era o mais indicado por conhecer bem a obra do espanhol, mas seus compromissos impossibilitaram. Regina, no entanto, empolgou-se com o tom irreverente da obra. "Há um trecho em que as mulheres, completamente tomadas pelo desejo, tomam uma mangueira de jardim e a colocam embaixo do vestido", conta a atriz. "O melhor é que, se fosse em outro romance, o desejo seria saciado em um bidê, totalmente isolado da humanidade."