São Paulo, 04 (AE) - O grupo mineiro Galpão completa 15 anos de existência com muito o que comemorar. Além de ter criado um novo espetáculo no ano passado, "Partido", dirigido por Cacá Carvalho, o Galpão manteve outros três em repertório - "Romeu e Julieta", "A Rua da Amargura" e "Um Molire Imaginário" - , viajou pelas principais capitais brasileiras e ainda ganhou o primeiro prêmio internacional: melhor espetáculo e figurino no San Antonio Internacional Theater Festival, EUA, por "Romeu e Julieta", de Shakespeare, dirigido por Gabriel Villela.
Boa parte da história desse grupo nascido nas ruas de Belo Horizonte está agora registrada no livro "Grupo Galpão - 15 Anos de Risco e Rito", escrito pelo dramaturgo Cacá Brandão. Lançado em dezembro na cidade de Belo Horizonte em uma edição de luxo ilustrada com 80 fotos selecionadas por Gustavo Campos, fotógrafo da trupe desde 1986, o volume oferece muito mais do que um mero registro cronológico dos espetáculos da companhia fundada em 1982 pelos atores Eduardo Moreira, Wanda Fernandes, Teuda Bara e Antônio Edson. Percalços e vitórias - Numa época de predomínio do imediatismo sobre a permanência, do marketing cultural sobre a criação consistente, nada melhor do que o relato das atribulações e conquistas, falhas e méritos de um grupo de atores determinados a fundar e manter uma companhia teatral permanente distante do eixo Rio-São Paulo. Uma bela história de percalços e vitórias. Numa narrativa clara, fluente e corajosa, Brandão descreve a trajetória da companhia dividindo-a em três etapas.
A primeira delas acompanha a formação da trupe a partir do encontro dos atores/fundadores numa oficina teatral para, em seguida, descrever o processo de criação dos primeiros espetáculos de rua. A segunda fase, que Brandão chama de "a adolescência" do grupo, tem como marco o primeiro espetáculo criado para o palco, "Arlequim, Servidor de Tantos Amores". Nessa etapa, a companhia adquire sua sede na Rua Pitangui, em 1989, com o dinheiro ganho numa excursão de dois meses e meio pela Europa.
A chamada "maturidade", a terceira fase, é marcada pelo mergulho do grupo numa dramaturgia mais densa. Inicia-se com os ensaios de "álbum de Família", de Nélson Rodrigues, dirigido por Eid Ribeiro que estreou em 1990. Em seguida veio "Romeu e Julieta", sob direção de Gabriel Villela, espetáculo responsável pela projeção nacional e internacional do Galpão. Livro - Um dos méritos da narrativa reside no fato de não esconder as falhas da companhia. Livros como esse costumam enfocar o lado positivo dos êxitos e críticas elogiosas ou os percalços decorrentes da falta de apoio oficial ou da iniciativa privada, pelo lado negativo. Não é, definitivamente, o caso de "Grupo Galpão - 15 anos de Risco e Rito", cujo autor, com o consentimento de toda a companhia, claro, não hesita em transcrever críticas negativas e desentendimentos entre os integrantes da trupe. Processo de criação - Brandão optou por ressaltar o processo de criação da trupe e apontar as dificuldades surgidas por causa de erros cometidos pelos integrantes do grupo, como no caso do fracasso da peça "Arlequim, o Servidor de Tantos Amores". Ainda assim, salta aos olhos do leitor, antes de tudo, a ferrenha determinação necessária para a formação e manutenção de uma companhia teatral permanente no Brasil.
Brandão narra todo o tumultuado processo de adaptação da peça "Arlequim, Servidor de Dois Senhores", de Carlo Goldoni, até a desastrada estréia e, o melhor, sem perder o humor. "A mãe do Chico (Pelúcio), por exemplo, comentou ao final do espetáculo ter ficado muito feliz porque seu filho não tinha o menor talento para o teatro", conta Brandão sobre a noite de estréia. "E, na verdade, foi por pouco que Chico não abandona tudo e retorna para ser fazendeiro em Baependi".
O relato dos percalços da trupe torna o volume valioso, entre outras coisas, por poder servir de estímulo a integrantes de outras companhias teatrais brasileiras que, certamente, lutam com dificuldades semelhantes. Mas o interesse desse volume não se restringe a profissionais de teatro, uma vez que o autor fala sobre questões de interesse mais amplo. Sem rodeios - Brandão aborda, sem rodeios, o delicado tema da tragédia que se abateu sobre o grupo com a morte da atriz Wanda Fernandes, num acidente de carro ocorrido no dia 21 de abril de 1994. O grupo acabara de iniciar a carreira premiada de "Romeu e Julieta", cujos papéis centrais eram vividos respectivamente por Wanda e seu marido Eduardo Moreira, ambos fundadores do grupo.
"Decidido a nunca mais apresentar "Romeu e Julieta", Eduardo segue para a Espanha com seu filho João e fica lá por um mês", conta Brandão para em seguida destacar o papel fundamental exercido pelo diretor Gabriel Villela na reestruturação da companhia. O diretor mineiro foi o elemento aglutinador do grupo naquele momento de desagregação.
O livro descreve em detalhes o sofrimento vivido pelo grupo e enfatiza a extrema sabedoria e generosidade demonstradas pelo diretor nessa fase que ele chamou de "encantamento" de Wanda. Villela dirigiu o espetáculo seguinte "A Rua da Amargura", tão premiado no ano seguinte como "Romeu e Julieta" tinha sido no ano anterior. Ao contar essa tragédia e suas consequências sobre os integrantes do Galpão, Brandão nada mais fez do que ser fiel à sua opção de narrativa.
"Eu tinha de contar uma história de 15 anos e, portanto
precisava escolher um ângulo para abordar a trajetória do grupo", diz. "Optei por falar sobre os momentos de crise e as saídas encontradas; escolhi como fio da meada detectar os pontos de virada na trajetória do grupo, as encruzilhadas, os momentos de decisão e transformação, as crises e as respectivas saídas".
Embora tenha passado a ser o dramaturgo oficial do Galpão a partir de 1992, ao realizar a dramaturgia de "Romeu e Julieta", o mineiro Brandão acompanha os trabalhos do grupo desde a sua formação. Apesar da intimidade com os atores, não foi fácil chegar à forma final do livro. "Colhi muitos depoimentos e fiz várias versões; comecei com uma descrição histórica, tipo memória, mas estava ficando frio e chato", lembra. "Só fiquei satisfeito quando perdi qualquer pretensão memorialista e o excessivo respeito aos relatos dos atores e parti para uma versão autoral".

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