Itamar Vieira Junior: autor que se tornou a grande revelação da literatura brasileira com o romance "Torto Arado", publica agora o livro de contos "Doramar ou a Odisseia"
Itamar Vieira Junior: autor que se tornou a grande revelação da literatura brasileira com o romance "Torto Arado", publica agora o livro de contos "Doramar ou a Odisseia" | Foto: Adenor Gondim/Divulgação


Em 2018, Itamar Vieira Junior era um desconhecido escritor baiano autor de dois volumes de contos publicados de maneira artesanal em pequenas tiragens. Tudo se transformou quando inscreveu seu primeiro romance, “Torto Arado”, no Prêmio Leya de obras inéditas em língua portuguesa.

Ao ganhar o prêmio em 2018, o livro foi publicado em Portugal e caiu nas graças dos leitores lusitanos. Lançado no Brasil em 2019 pela editora Todavia, “Torto Arado” foi agraciado com os dois principais prêmios literários do país em 2020: o prêmio Jabuti e o prêmio Oceanos.

Em pouco tempo, Itamar Vieira Junior, nascido em 1979 na cidade de Salvador, se converteu na grande revelação da literatura brasileira. O romance também caiu nas graças do leitor brasileiro e se tornou o livro de literatura brasileira contemporânea mais vendido dos últimos anos. No final de 2020 foram vendidos mais de 70 mil exemplares. Na sequência começou a ser traduzido para mais uma dezena de idiomas por editoras de vários países.

O sucesso de “Torto Arado” é decorrência de uma sucessão de fatores. Não só por sua qualidade literária e pelos temas tratados, mas também pela empatia que estabelece com o leitor. A narrativa desperta a memória afetiva dos brasileiros com a terra, com ambiente rural, com as crenças populares, com as relações familiares, com vivências espirituais, com os direitos humanitários, com as relações de poder, com a luta pela sobrevivência, com a batalha por uma existência digna. O retrato da realidade das questões sociais que a literatura brasileira, principalmente aquela produzida nas regiões sul e sudeste, não concedeu muita atenção nas últimas duas décadas.

Após a grande repercussão do primeiro romance de Itamar Vieira Junior, a editora Todavia está lançando seu novo livro, o volume de contos “Doramar ou a Odisseia”. A obra traz 12 contos. Alguns inéditos, outros publicados originalmente nos dois primeiros e poucos conhecidos livros do escritor baiano. Eles trazem temáticas e linguagens próximas de “Torto Arado”, demonstrando a unidade de sua literatura em construção. Trazem personagens negras, indígenas ou marginalizados, geralmente mulheres, que vivem a percepção de que o mundo que foi destinado a elas não é um mundo muito agradável.

O conto “Alma” traz a voz de uma escrava que foge de seus donos e começa uma solitária caminha pelo interior do país: “Esperava encontrar o acalanto de um lugar onde exista liberdade, eu, uma mulher que nasceu acorrentada aos desejos dos meus senhores, eu que não tinha nome porque não era nada.” Vivendo quase como bicho, realiza mentalmente um inventário impactante e ferino sobre a condição de mulher negra escrava: “Eu, uma mulher, uma alma, que lutava todas as horas, e da primeira vez que me levaram um filho urrei de tristeza, como uma cadela, meus filhos arrancados como uma ninhada de cães, um a um foram tirados de mim, eu que agora caminho para frente, lembro-me de todas essas coisas que doem mais que as feridas abertas dos meus pés.”

No conto “Doramar ou a Odisseia” que dá título ao livro, o autor narra a história de uma empregada doméstica que, a caminho do trabalho, vê um cachorro de rua morrendo após um espancamento. Ao presenciar a cena, a personagem embarca numa epifania atormentada de sua própria condição de mulher, pobre e preta: “Olho para a porta esperando que chegue alguém para pedir algo, pedem um copo d’água, pedem uma prato e uma faca para cortar uma fruta, pedem que eu lave o prato, pedem os sapatos que estão na área de serviço, pedem que eu diga onde está o casaco, pedem uma toalha de prato, pedem uma vela e uma reza, pedem que eu varra os farelos de algo, pedem que eu passeie com o cão... Olham para mim e dizem para os convidados que sou ‘como se fosse da família’, e nada posso dizer.”

O conto “A Oração do Carrasco” traz a história de um carrasco que leva seu ofício com uma seriedade inabalável. Se sente moralmente honrado em sustentar a família com seu trabalho. Não questiona seu ofício e suas consequências. Um belo dia resolve ensinar sua profissão ao filho. O drama é que o filho não deseja seguir o trabalho do pai, não deseja ser um algoz, não quer ser um assassino, não quer ter a mesma vida que o pai.

Entre o velho mundo do pai e um novo mundo aspirado pelo filho, aparece um fiapo de lucidez: “Todos eram sombras de si mesmos vagando pelo mundo. Os carrascos, a princípio, acreditavam que tornariam o mundo melhor com o estrito cumprimento de seu dever. Alguns sentiram culpa depois de seus crimes. Outros repetiriam tudo se fosse preciso, uma e outra vez. Alguns não se questionaram sobre seus atos e diziam que cumpriam ordens. Alguns carrascos se travestiram de presidentes, reis, anjos, salvadores, redentores, guias, líderes e nem sequer tocaram a pele de suas vítimas, olharam seu semblante ou viram a desesperança nas faces dos sentenciados. Continuam a viver e morreram sem que a culpa os tivesse alcançado.”

Serviço:

“Doramar ou a Odisseia”

Autor – Itamar Vieira Junior

Editora – Todavia

Páginas – 160

Quanto – R$ 49,90 (papel) e R$ 39,90 (e-book)