Durante um evento que debate a violência e tolerância na sociedade brasileira, uma artista plástica sobe ao palco. Sua fala pretende ser sobre as relações entre arte e política, entre ódio e violência.

Quando a mulher inicia sua palestra, um desconhecido invade o palco com uma barra de ferro nas mãos. Aos gritos, começa e espancar a palestrante com fúria e xingamentos. Após a mulher cair no chão toda ensanguentada, o homem continua agredindo, chutando e berrando ofensas.

A platéia de centenas de pessoas assiste a tudo incrédula e sem reação. A ação se resume apenas em filmar a agressão com seus celulares. Os seguranças do teatro, igualmente atônitos e sem reação, não entendem o que está acontecendo.

Essa cena é o ponto de partida de “Solução de Dois Estados”, novo romance do escritor gaúcho Michel Laub que acaba de ser lançado pela editora Companhia das Letras. A barbárie da violência dentro de um evento que discute civilizadamente a violência aparece como porta de entrada na tentativa de entender um Brasil violento, hipócrita e intolerante.

Michel Laub coloca o dedo numa coleção de feridas que se tornaram exibicionistas nos últimos anos na sociedade e na política brasileira
Michel Laub coloca o dedo numa coleção de feridas que se tornaram exibicionistas nos últimos anos na sociedade e na política brasileira | Foto: Divulgação

Tudo começa quando uma cineasta alemã vem ao país para realizar um documentário sobre a atual violência brasileira. Ela carrega o trauma de ter perdido o marido assassinado por um assaltante na cidade do Rio de Janeiro tempos atrás. Para compor o documentário entrevista dois irmãos: a artista plástica Raquel e o empresário Alexandre.

Raquel desenvolve uma arte contemporânea reconhecida em todo o mundo. Pesando 130 quilos e vítima de bullying desde a infância, utiliza seu corpo nu, e a violência sobre esse corpo distante dos padrões, como principal elemento de suas obras.

Alexandre é dono de uma grande rede de academias fitness na periferia de São Paulo. Um negócio mágico que rende muito dinheiro e poder unindo esporte e religião através de academias vinculadas às igrejas evangélicas. Uma ideia de prosperidade dos fieis que envolve corpo, alma, economia e uma dose de milícia.

A narrativa “Solução de Dois Estados” é formada por três vozes que compõem o documentário: as perguntas da cineasta e a resposta individual de Raquel e Alexandre. Três pontos de vista diferentes. O destaque reside na visão sobre os fatos dos dois irmãos, completamente antagônicos e repletos de ódios e ressentimentos.

Raquel e Alexandre representam dois lados de uma mesma moeda da sociedade e da política brasileira da atualidade. Uma família de classe média que perde tudo com a política econômica do Plano Collor de 1990. Uma família de classe média que se derrete. Os pais morrem e os irmãos seguem caminhos diferentes pautados por uma batalha pelas migalhas da herança.

Além de apresentar várias visões sobre uma mesma realidade, “Solução de Dois Estados” oferece um passo além. Demonstra como a intimidade familiar, e a intimidade individual, sofre a influência da política. Ou é determinada pela política. Fatores que passam despercebidos, mas capazes de causar grandes estragos de maneira silenciosa.

Michel Laub coloca o dedo numa coleção de feridas que se tornaram exibicionistas nos últimos anos na sociedade e na política brasileira. Feridas negligenciadas em nome de divisões pautadas por ódio e intolerância. Diferentes visões de mundo fechadas em si mesmas. E completamente avessas a qualquer ideia de conciliação. Completamente indispostas a qualquer ideia de perdão. Uma corda que sempre arrebenta do lado mais fraco.

A fala final da personagem Raquel resume o sentido: “Da minha parte, eu olho para essa humanidade e não quero me adaptar. Eu não quero ser uma humanista moderada e razoável. Não vou propor conciliação poética. Não vou perdoar ninguém. Não vou mudar o meu corpo, o jeito como penso, como digo isso e por isso acabo sempre no mesmo lugar. Eu vou continuar dizendo, de novo, de novo e de novo, enquanto eu estiver aqui. O meu irmão pode virar o chefe das milícias do universo, e eu vou seguir contando a história que mostra quem eu sou e quem eles são. Eu sou o efeito do que eles fizeram para serem quem são. A lembrança viva disso. Em dois mil e dezoito e daqui para a frente. Eles são o futuro, mas o futuro também sou eu.”

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Serviço:

“Solução de Dois Estados”

Autor – Michel Laub

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 248

Quanto – R$ 49,90 (papel) e R$ 29,90 (e-book)