Ferréz: "Numa tarde fui a um amigo e o preparei para ficar com os originais do que eu tinha escrito, com medo de morrer antes de terminar o livro"
Ferréz: "Numa tarde fui a um amigo e o preparei para ficar com os originais do que eu tinha escrito, com medo de morrer antes de terminar o livro" | Foto: Divulgação

20 anos atrás chegava às livrarias “Capão Pecado”, um livro que iria tocar fundo o pensamento de milhares de jovens leitores. O autor, um rapaz de 25 anos, não imaginava que o romance, em pouco tempo, vendesse mais de 100 mil exemplares. Queria apenas narrar o cotidiano de adolescentes de seu bairro de periferia, Capão Redondo, na época considerado o lugar mais violento da cidade de São Paulo. Um cotidiano imenso em miséria, violência, crime e falta de perspectiva.

“Capão Pecado” foi lançado em dezembro de 2000 pela editora Labortexto. Depois ganhou edições pela editora Objetiva e pela editora Planeta. Foi publicado na Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Espanha, Portugal e Estados Unidos. Entrou na lista leitura obrigatória para o vestibular de várias universidades brasileiras. E fez do jovem autor estreante um escritor renomado.

Em comemoração aos 20 anos da primeira edição da obra, a editora Companhia das Letras está lançando uma nova edição revisada pelo autor. No texto de apresentação, Ferréz afirma que o livro salvou sua vida: “Em paralelo à escrita do livro, cheguei ao ponto de não ter nada, de começar a andar com outras amizades, de ver alguns amigos da infância entrarem no fluxo do bairro. Eu começava a viver o meu tema e deixar de ser só um observador. E numa tarde fui a um amigo e o preparei para ficar com os originais do que eu tinha escrito, com medo de morrer antes de terminar o livro. Aos poucos a vida criminal foi chegando, eu estava entrando no clima do bairro. Entre terminar de ler um velho romance do Hesse e descarregar uma carga roubada, entre escrever mais um capítulo e ir com os manos ver uma situação, entre testemunhar os meus próximos se matando sem nem arranhar a superfície do sistema, as palavras foram crescendo, e era nítido quem iria ganhar. A literatura é egoísta demais para ser dividida com o crime.”

“Capão Pecado” narra a história de Rael, um adolescente que vive com a mãe num barraco do Capão Redondo. Seu objetivo é não entrar no fluxo do bairro, pautado pelo tráfico e pelo crime. Passa de emprego por emprego empenhado em ser um jovem decente, honesto e trabalhador. Mas sua vida sofre uma reviravolta quando se apaixona por Paula, a namorada de um amigo. Uma paixão que vai empurrá-lo para o crime e custar sua própria vida.

Ao mesmo tempo em que sonha com uma vida melhor e grandes realizações, Rael tem consciência de sua condição na estrutura social e econômica do país. Sem direitos. Sem dignidade. Sem igualdade social. Tem consciência também do lugar onde vive, onde a pobreza proclama o fim do futuro. Uma realidade brutal que leva à total falta de perspectiva de uma vida melhor.

Rael enxerga essa falta de perspectivas tanto nas gerações anteriores quando na geração que pertence e futuras gerações. Em uma das passagens do livro o narrador exemplifica essa falta de perspectiva eterna da seguinte forma: “Logo ao entrar, recebeu um beijo de sua mãe, que ainda estava com as roupas de serviço. Olhava a figura de sua doce mãe se dirigir ao fogão e girar o botão do fogareiro: o feijão estava pronto e o arroz seria o resto de ontem. Ela logo fez seu prato carinhosamente: arroz, feijão e mandioca frita. Rael começou a comer e, pensativo, chegou à conclusão de que, no serviço de sua mãe, ela não deveria passar de uma dona Maria qualquer; aquela que cozinha bem, que trata os filhos dos outros bem, mas que dificilmente teria seu nome lembrado pela família que tanto explora seus serviços. E, num futuro certo de premeditado, aqueles garotinhos que ela ajudava a criar e alimentar seriam grandes empresários como o pai, e com certeza os netos daquela simples dona Maria seriam seus empregados mal assalariados e condenados a uma vida medíocre.”

Alguns pesquisadores nomeiam a escrita de Ferréz de “literatura marginal”, outros nomeiam de “literatura periférica”. O fato é que “Capão Pecado” possui o mérito de retratar uma realidade do ponto de vista de dentro da própria realidade fazendo uso da linguagem oral própria desta realidade.

Ferréz nasceu em 1975, com o nome de Reginaldo Ferreira da Silva, no bairro de Valo Velho, zona sul de São Paulo. Com três anos de idade se instalou, com a família, em Capão Redondo, onde vive até hoje. É autor de vários livros, entre eles “Manual Prático do Ódio” (2003), “Ninguém é Inocente em São Paulo” (2007), “Deus Foi Almoçar” (2012) e “Os Ricos Também Morrem” (2015).

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Serviço:

“Capão Pecado”

Autor – Ferréz

Editora – Companhia de Bolso

Posfácio – Marcelino Freire

Páginas – 144

Quanto – R$ 29,90 (papel) e R$ 9,95 (e-book)